Sábado, cinco da manhã. Não passavam nem duas horas após ter ido dormir o sono dos justos, e sou acordado de sobressalto por um estrondo que vem da cozinha. Seria a queda de um objecto de loiça ou de vidro, possivelmente uma garrafa. Mal abri os olhos e alguns segundos depois já suspeitava da razão daquele ruído:
era o sr. rato, regressado depois de uma breve ausência. Detive-me a pensar na última vez que tinha deixado veneno no chão à volta da máquina de lavar, perto do buraco por onde passa o tubo que escoa a água, e por onde ele entrava. Foi já há algum tempo. Bolas, tenho mais que pensar do que na possibilidade da vinda do sr. rato. Por acaso já nem le lembrava dele, e pensava que depois do nosso último encontro tinha desistido de me fazer as suas visitas nocturnas, intimidado pelo veneno e pela minha Gulliveresca presença. Substimei-o.
Só podia ser ele, claro. A mobília, a loiça ou as panelas não se mexem sozinhas, e é impossível a um ladrão entrar na minha casa a não ser pela porta. Restassem dúvidas, e enquanto ainda me conformava com o seu possível regresso, o sr. rato deixa bem claro que não me enganei, e nem estava a sonhar, e começa a guinchar. Guinchava alto e bom som, querido e estimado leitor. Uma sinfonia de guinchos que se prolongou por mais de dois minutos, subindo de tom, como se estivesse a cantar para mim. Fiquei imóvel no colchão, arrepiado, pensando no que me esperava caso me levantasse da cama. Pelo sim, pelo não, fechei a porta do quarto. Os guinchos haviam cessado.
Duranto cinco longos e angustiantes minutos, medi a temperatura dos meus medos. Seria este o mesmo rato, que agora voltava para me visitar e ver se lhe deixei alguma bucha que ele pudesse petiscar? Será que nunca me deixou, e passou a frequentar o meu domicílio apenas durante a minha ausência? Seria outro rato? E se fosse uma ratazana? O sr. rato de que me lembro dificilmente produziria guinchos tão sonoros. E se os guinchos fossem de dor, por lhe ter caído um objecto em cima? Nem queria pensar na possibilidade de encontrar o bicho esmagado, com metade das tripas de fora, e ainda de olhos abertos, aguardando pelo último estertor. Que grande merda pá. E logo num Sábado à noite.
Ainda pensei em voltar a dormir, e inteirar-me da situação no decurso dessa manhã. Debalde, pois os guinchos já me tinham deixado alerta, e a adrenalina era tanta que as pernas podiam correr uma meia-maratona naquele preciso momento. Foi aí que me levantei, decidido a colocar um ponto final a tudo isto. Afinal aqui o homem era eu, e o rato era ele. Se fosse o mesmo sr. rato da última vez, certamente que ia ser ele a fugir. Se fosse outro roedor mais afoito, e no evento de me atacar ou desafiar a minha presença, tinha os meus argumentos para vencer a contenda. Não há rato no mundo capaz de contrariar o génio humano. Bem, talvez o Rato Mickey, mas isso é ficção.
Abro a porta do quarto, acendo a luz da sala, e confirmam-se as minhas suspeitas - as suspeitas e não os receios, para bem do meu pobre coração, que começava a querer pular do peito e fugir para outro sítio onde não houvessem ratos. Ao perceber que perturbou o meu descanso, e que lhe vinha pedir satisfações, o sr. rato sai da cozinha como um raio, e esconde-se atrás do frigorífico. Pelo menos não estava ferido, e muito menos com as tripas de fora. E agora? Estaria encurralado? Enquanto pensava no meu próximo passo, eis que lá vem ele, aos pulinhos pelo chão, pequenino e encolhido, saltando por cima de uma caixa de sapatos e zás! pela escada abaixo e puf! desaparece sem deixar rasto.
Dejà vu. Eis que me foge outra vez o meu visitante, sem que nos pudessemos sentar e ter uma conversa de homem para rato.
Com o sr. rato fora de cena, vou a cozinha ver de onde partiu o barulho que me tinha acordado, e reparo que as garrafas do azeite e do óleo foram derrubadas, sem que contudo se tivesse entornado uma gota. O azeite e o óleo estão num prato em cima de uma caixa de cartão - o som que ouvi foi o do impacto da garrafa de vidro no prato de loiça - e dentro dessa caixa está um saco de arroz. Como é impossível àquela criatura abrir a caixa, e sendo de cartão duro e liso, não consegue roê-la. Os guinchos que ouvi naquela noite eram de frustração por não poder chegar ao arroz. Se eu percebesse ratês entendia o seu lamento: "Porquê meu S. João Ratão? Porque não me deixais chegar ao arroz?".
Resolvido este mistério, começa a dar-me alguma larica, pois com isto tudo já passavam das sete horas e luz do dia entrava pela janela do quarto. Não valia a pena voltar para cama, pelo menos por agora. Abro o frigorífico e não encontro nada que se coma, e não me apeteciam massas instantâneas. Vou até ao Circle K comprar uns iogurtes, e quando regresso dez minutos depois - ousadia das ousadias - encontro o sr. rato no meio da sala, possivelmente a fazer o aquecimento antes de mais uma investida na caixa de arroz. Olhou para mim espantado, como quem diz "voltaste tão depressa?", e estando eu no topo da escadaria, a sua escapatória habitual, corre no sentido oposto e sai pelo ralo da casa-de-banho, que tal como na máquina de lavar, é um buraco no canto da parede. Mais uma pista sobre a origem do sr. rato, e por onde ela entra sem ser convidado.
Passei ao mais importante: procurar um jeito do sr. rato não ir mais lá a casa, pois a sua teimosia em não querer contar os seus problemas, as razões que ali o levam e tudo mais passou dos limites. Nunca me preocupei muito em identificar e vedar os possíveis acessos do sr. rato à minha casa, e tudo o que fiz foi selar o buraco da parede atrás da máquina de lavar, e deixar veneno espalhado naquela área. Desconfio que quem anda a comer as bolinhas vermelhas destinadas ao sr. rato são as baratas, pois tenho encontrado uma ou outra jazendo inerte no chão da cozinha. As tontas. Pelo menos o veneno serve para qualquer coisa.
Tapei o ralo da casa-de-banho com um tijolo, uma solução provisória. Comi os iogurtes, vi um pouco de televisão e por volta das 11 horas fui dormir, tentando compensar as horas de sono perdidas por causa do sr. rato. Acordei depois das 2 da tarde, e de cabeça fresca lembrei-me de um plano genial. Nessa noite deixaria o ralo da casa-de-banho aberto, a porta fechada, e um pratinho de arroz no chão. Se o sr. rato optasse por esta entrada, comeria o arroz, e talvez depois fosse à vida dele. No dia seguinte o mesmo procedimento, só que desta vez juntaria veneno ao arroz. Na esperança de encontrar mais arroz, o rato regressaria, só que agora no lugar de um banquete a refeição seria um...mata-bicho, literalmente! Boa piada, admitam.
Sei que isto é uma solução cruel para o sr. rato, mas para grandes males, grandes remédios. Um dos meus colegas com o mesmo problema comprou um daqueles tapetes pegajosos cujo cheiro atrai os ratos, que ao meterem as patas em cima da armadilha ficam lá colados. Eu nem quero imaginar o sr. rato ali colado, morto pelo cansaço, com os olhos bem abertos em desespero e a língua de fora, evidenciando uma luta até à exaustão para se livrar de tão triste destino. Podia ser que se o sr. rato comesse o veneno fosse morrer para longe dali, e se fosse mesmo esperto não comia de todo, e fazia-me um manguito "à rato". Os dados estavam lançados; a minha empregada chegou ao final da tarde, e eu preparava-me para ir jantar fora. Pedi-lhe que colocasse o tijolo de volta no ralo da casa-de-banho depois de fazer a limpeza, e saí cantando e rindo, ansioso para levar a cabo o elaborado raticídio. Mal eu sabia que outras surpresas me reservava o sr. rato.
Voltei cerca das 11 horas, casa limpa, arrumada, tijolo no sítio, tudo impecável. Melhor ainda ficaria depois de eliminar o sr. rato - pelo menos foi o que eu pensei. Depois de me pôr mais à vontade, sentei-me em frente ao PC, onde planeava ficar meia-hora ou pouco mais antes de ir dormir, sem que antes deixasse o prato de arroz na casa-de-banho e garantir que a porta ficaria bem fechada. Não tinham passado dois minutos e o meu plano foi pela água do sanitário abaixo. Escuto um barulho vindo do sótão, olho para trás e vejo nem mais nem menos que o sr. rato a tentar descer, qual artista convidado saído de trás de um cenário luminoso num qualquer "talk-show". Foi sol de pouca dura, pois mal me viu, deu meia volta, "oops! esquece lá, fica para a próxima", e reentra no sótão.
Foi aqui que me caíu o coração aos pés. O sótão? Como é possível? Já lá estive várias vezes e nem sinal de ratos. As telhas estão cobertas com um placado, e a pequena janela que dá para a rua está tão presa que nem dá abrir. Como foi ali parar o sr. rato? Apesar do alçapão estar aberto, não me recordo de o ter visto a subir pelas escadas, e para ele isto seria como praticar montanhismo. Foi aí que me acendeu uma lâmpada por cima da tola, como na banda-desenhada. Eureka! Já sei de onde vem o rato, porque insiste em visitar-me, e de como consegue aparecer tão de repente e desaparecer sem deixar rasto. A descoberta, contudo, deixou-me ainda mais desanimado que antes. Preferia continuar na ignorância.
Como já referi no episódio anterior e também neste, o sr. rato desce a escada e "desaparece", como num acto de ilusionismo. É o Houdini dos ratos. É impossível que escape por debaixo da porta, onde mal cabe uma porta, e o buraco por onde passa o contador da água está tapado com cimento. Esta escadaria que vai da porta da rua até à sala tem um tecto baixo, feito em tábuas de madeira, e por cima está o sótão. É possível - mais do que isso, quase certo - que o sr. rato fuja por uma fresta nas tábuas, e se esconda num pequeno vão entre a escada e o sótão. Desta mesma maneira tem acesso ao sótão, e sabe-se lá que outras entradas, saídas, atalhos e esconderijos existem neste autêntico labirinto.
A primeira conclusão a que cheguei, e que me deixou apreensivo é esta: o sr. rato não me vem visitar. O sr. rato vive ali. Quando me mudei em Junho, recordo-me de no dia seguinte a ter comprado a secretária para o computador ter encontrado excrementos de rato em cima da mesma. Na altura não dei muita importância a esse facto, e julguei uma vez com a casa habitada, os ratos faziam a trouxa e punham-se a milhas. Aparentemente para ele eu é que sou o invasor. E depois que sentido fazia que o mesmo rato me visitasse em diferentes intervalos de tempo? A verdade é que está e sempre esteve a morar debaixo do mesmo tecto que eu, num vão algures entre a escada e o sótão.
Uma segunda conclusão, que não é bem uma conclusão mas antes uma forte possibilidade que me deixa em pânico, é a do sr. rato ter família: a sra. rata e o rato júnior - e durmo mais descansado assumindo que como são chineses, cumprem com a política do filho único. Terá, portanto, uma ninhada, e isto deverá ser um facto recente, pois só assim se explica as visitas mais regulares dos últimos dias, e os guinchos de desespero em frente ao santuário do arroz. Podia estar a implorar por comida, que tem bocas para alimentar, e um dia destes ainda me aparece à porta o sindicato dos ratos a exigir que eu lhe dê um subsídio em arroz. É ainda possível que a sra. rata lhe tenha feito um ultimato: "ou começas a trazer o arroz para casa ou logo à noite não te dou a menina" (as meninas têm "rata", portanto as ratas têm "menina").
Mesmo assim vou levar o meu plano adiante, só que vou deixar o prato de arroz na cozinha; um primeiro "plain", um segundo "aldente", com veneno do bom. Espero que ele caia no truque, e que os ratos não tenham também a sua versão do provérbio "quando a esmola é muita, o pobre desconfia". Custa-me saber que deixo uma viúva e orfão ou orfãos, mas não me agrada a ideia de partilhar a casa com alguém que não paga a renda, não me faz companhia e não dá sequer uma ajudinha em coisa nenhuma. Se ainda me pudessem ficar lá para abrir a porta ao técnico da CTM para me instalar a ligação por modem, e cujo horário coincide sempre com o meu, ainda tinham alguma utilidade. Assim não. Aparecer o chefe de família de surpresa a pregar-me um cagaço e a cantar o fado ratado às cinco da madrugada, mesmo que num Sábado, não pode ser. Veneno é a solução.
Mas ainda vai a tempo de me fazer mudar de ideias, sr. rato. Apareça lá na sala um dia destes, e em vez de correr disparado quando me vê, sente-se comigo e converse um bocadinho. Não seja tímido. Tenho lá um queijinho flamengo da Mimosa que podemos petiscar, umas cervejolas para mim e água da sanita para si. Se quiser posso deixar a sua parte do queijo na lata do lixo de um dia para o outro, conforme o seu gosto. E depois ficamos a conhecer-nos melhor, partilhamos as nossas ratices, falamos de tudo em pouco...até de ratas, claro. Vá pensando nisso, e até ao nosso próximo encontro.