segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Deixem-me comer em paz!


São servidos? Ai são? Peçam um para vocês, ora...

Portugal é no Ocidente, e mais Ocidente que isso não há, e a China é no Oriente, e mesmo um bate-chapas da Bobadela com a quarta classe que não saiba apontar os continentes no mapa sabe que "fica longe", e que é tudo "muito diferente". Vivemos há 500 anos com o "choque", mas isto porque nos temos conseguido respeitar mutuamente, sem grandes assomos de arrogância ou complexos de superioridade. Mas tivemos e temos as nossas "turras" sim, os nossos choques, mas é apenas sem querer. Cada vez que um chinês se incompatibiliza com um português aponta para a nossa pequenez e laxismo, e sempre que nos desentendemos com eles chamamos-lhes de "cabeçudos", como quem diz, são uns tipos difíceis de entender e de entender os outros. Os macaenses têm razão de queixa dos dois, e os dois retribuem, e enquanto concordam nesse aspecto, arranja-se outro ponto de discórdia e acabam todos a torcer o nariz aos restantes. É um torneio triangular: todos contra todos.

Quem é sociável, culto e desinibido - como eu - não tem problemas em meter conversa seja com quem for, mesmo que a pessoa desconfie do excesso de simpatia, ou do facto de nunca terem passado do simples "bom dia" ou "boa tarde" e estejam subitamente a discutir um tema elaborado há mais de dez minutos. Quem é mais reservado, tímido ou desconfiado - e falo de alguns fdp que por aí andam que pensam que têm uma vida espectacular e que os outros querem saber mais sobre ele porque têm inveja - não sabe ter uma conversa de jeito, ou pelo menos entra com o pé esquerdo na hora de querer conhecer melhor alguém. Com alguma sorte, arranja duas ou três pessoas mais pacientes que lhe dão outra oportunidade. Contudo há gente que simplesmente não sabe como meter conversa. Sendo eu português e passando a maior parte do tempo que estou consciente rodeado de chineses e macaenses - os colegas de trabalho - há aspectos que para eles podem parecer uma coisa normal, mas que ultrapassam a minha compreensão. O convívio e as relações de trabalho complicam-se ainda mais quando além do obstáculo da língua, sempre um problema, existem diferenças culturais difíceis de converter num denominador comum. Nada como ir directo ao assunto e dar alguns exemplos, usando como referência algo que todos fazemos, independente da origem, etnia, idade ou cultura: comer.

Por vezes estou a comer uma banana, chega alguém que não me é muito íntimo mas quer ser simpático e pergunta: "estás a comer uma banana?". Querendo ser agradável, respondo apenas "sim, sim", mas se quisesse rebaixar esta pessoa e expô-la ao ridículo que ela própria criou, respondia: "muito bem! vejo que não faltaste ao jardim de infância no dia em que aprenderam a reconhecer uma banana". Mas para quê perder o fôlego? Respondo que sim, estou a comer uma banana, e se a outra parte tiver o mínimo de modos diz "bom proveito" - o que nunca acontece. Assisti a casos de colegas que estão a comer uma refeição da McDonald's, com sacos do McDonald's, hamburgueres embrulhados em papel do McDonald's, copos com o logotipo do McDonald's, um cheiro de comida do McDonald's no ar e alguém a montar um brinquedo que ganhou numa "happy meal", e chega um cromo que pergunta: "Estão a comer McDonald's?". Os mais diplomáticos podem responder: "Sim...és servido?", mas o que dá vontade é de rematar com um sardónico: "McDonald's? Na...não se vê logo que isto é dobrada com feijão-manteiga?" E as probabilidades dele entender o sarcasmo seriam poucas.

E o que responder quando alguém nos pergunta se "somos servidos"? Ora, primeiro é preciso entender se a pessoa que nos está a oferecer comida é bem intencionada ou está a gozar com a nossa cara. Se for uma sandes ou um gelado já comidos pela metade, pode responder-se "não, podes enfiar isso no cu que é mais perto da meta e economizas tempo na digestão" - a não ser que se trate de um retardado mental, que nesse caso é preciso dar um grande desconto. Nos outros casos, o melhor é recusar, dizendo "não obrigado, bom proveito", ou se lhe apetecer gastar mais saliva explicar que já almoçou, ou que vai almoçar com uns amigos, ou que tem que almoçar duas vezes, uma com a mulher e outra com a amante, e tem que ter apetite para os dois almoços para que nenhuma desconfie. Talvez neste último exemplo se deva limitar a "não obrigado, bom proveito". No entanto há tipos que levam o esforço longe demais, e quando lhes perguntam se são servidos, levam a mão ao estômago, fazem cara de enjoados e fingem que arrotam, como quem quer dizer "se eu comer isso agora vomito as paredes e o tecto". Basta dizer "não obrigado", ó tanso!

Quando se trata de comida, torno-me bastante defensivo. Deve ser a minha costela de canídeo, mas se alguém me aborrece enquanto estou a comer, tenho tendência para morder. É por isso que não gosto de "yum-cha" e esse tipo de restaurantes chineses onde mais que uma pessoa mete a colher no mesmo prato das restantes, e nos restaurantes "à la carte" não tenho o hábito de "dar a provar" aos outros aquilo que estou a comer. É isto que me apetece comer e mais nada, pronto, portanto tirem as mandíbulas do meu "morfes", se não se importam. Por vezes estou a almoçar sozinho e chega um gajo qualquer com que não tenho grande conversa e me pergunta "isso é bom?", quero responder-lhe: "não, é uma porcaria mas eu sou masoquista". Se for no modo afirmativo, "isso é bom!", dá-me vontade de lhe dizer "eu sei, vai comprar um para ti e demora-te, para eu poder comer em paz". Se a aproximação é num tom paternalista, do tipo "não comas isso tantas vezes que faz mal", ou o pior de todos "isso não presta", é preciso respirar fundo e contar até mil para não perder a calma e dizer um palavrão. Ou vinte.

Sendo um ocidental, ou um "kwai-lou", desperta-se a curiosidade alheia sobre aquilo que como. "Qual é a ração que se dá aos estrangeiros?", interrogam-se eles. Se abro uma embalagem com massa frita ou outro prato tipicamente chinês-da-tasca-da-esquina olham para aquilo abismados e exclamam "waaa...!", como quem nunca imaginou que eu fosse capaz de comer aquilo, pois afinal, não sou chinês, não falo chinês, e nem percebem como fui capaz de explicar ao gajo da loja o que queria. Se calhar enganei-me, e com esse conceito presente às vezes perguntam: "você gosta disto???". O que me faz subir a mostarda ao nariz, especialmente se estiver a comer um cachorro-quente, é quando dois ou três me rodeiam e fazem um interrogatório completo sobre a minha refeição: "o que é isto?", "quanto custa?", "onde comprou?", "têm mais o quê?" - só falta perguntar a proporção de cada nutriente e de cada aminoácido. Sinto-me como um animal raro que os visitantes do zoo fazem questão de observar na hora da refeição. E não é que estejam mesmo interessados em comprar, a não ser que lhes diga que "é grátis, e ainda oferecem uma bebida". Nesse caso passam a almoçar e jantar lá todos os dias, e levam a família toda.

Uma vez estava com a minha mulher numa tasca do Mercado da Mitra a comer um "min" com aquele pudim de sangue de pato, uma especialidade regional que aprecio, sendo um grande adepto da cabidela e derivados. Uma senhora chinesa de meia-idade aproximou-se de mim e perguntou em inglês "você sabe o que é isso que está a comer?", enquanto fazia uma cara de marota. Olhei com indiferença e respondi-lhe que sim, que sabia. Meio desiludida com a consciência daquilo que estava a levar à minha própria boca, fechou a cara e disse, gaguejando: "pois...é que muitos estrangeiros não gostam, é só isso". Encolhi os ombros, e já com os olhos no prato, que queria comer em paz e sossego, disse "mas eu gosto...". A minha mulher criticou a frieza com que lidei com a situação, mas o que devia ter eu feito? Fingir que não sabia, sorrir que nem um parvinho quando me dissesse o que era, e dizer: "a sério??? ena pá! Uau! Fosga-se! Bestial!" ou então entrar em pânico, largar os pauzinhos, vomitar em cima dos outros clientes e no fim esfregar a língua coma escova de lavar as panelas? Ela ia para casa toda satisfeita e produzir uma tese de mestrado subordinada ao tema "chineses e ocidentais são de planetas diferentes".

Portanto quando chega a hora da refeição, o melhor mesmo é evitar o preconceito. Se o racismo é a discriminação com base na raça, então isto será...gastronomismo? Se vejo um chinês a comer bacalhau ou um bitoque, não me ponho a rir e bater palmas enquanto lhe tiro uma fotografia para mostrar ao mundo esta disparidade, este fenómeno do Entroncamento. Quando vejo alguém a comer sossegado não lhe vou perguntar "se gosta", pois percebe-se que gosta. Está a comer! Nunca seria capaz de dizer que a comida do tipo do lado "não presta", e se ele me perguntar o que penso, no máximo digo-lhe que "não gosto", e apenas se no gostar mesmo. Uma vez estava num desses "buffets" insonsos desses hotéis de luxo da treta que por aí abundam e peguei em meia dúzia de fatias de sashimi de salmão. Fui buscar um pires com molho de soja, mas todos tinham uma caganita de wasabi lá dentro. Como detesto wasabi, fui pedir um pires vazio onde pudesse deitar o molho se soja, e o empregado reagiu como se estivesse a pedir algo impossível, fora deste mundo, a coxa de algum animal extinto, como o dôdô. Perante a minha insistência e o um ar de quem não estava a achar muita piada à brincadeira, acabou por atender o meu pedido. Fosse eu um gajo mesmo sacana pedia-lhe para me chamar o gerente, e já agora a sua mãe também. O gerente para lhe dizer que ele nunca devia estar a trabalhar ali, e a mãe para lhe dizer que nunca devia ter nascido.

Sem comentários: