segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Três macacos


Mais um fim-de-semana que nos deixa, prometendo regressar na sexta-feira, e desta vez para ficar três dias - sabe sempre tão bem. Para começar a semana em beleza, deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Boa semana de trabalho!

Quando eu tinha os meus doze anos, numa visita ao zoo de Lisboa, assisti a uma cena que nunca mais esqueci, e que me ensinou muito sobre a vida. Numa jaula estavam três macacos, que encostados à grade aguardavam pelos amendoins que os visitantes lhes atiravam. Um deles, aparentemente o chefe, açambarcava todos os amendoins, e crescia para os outros dois se estes tentavam apanhar algum. A certa altura um deles enche-se de coragem, apanha um amendoim, trepa pelos troncos, e é perseguido pelo “chefe”. O terceiro, sozinho perante os visitantes, estica o braço de fora das grades com a mão aberta, enquanto vai virando a cabeça para se certificar que o macaco guloso não o via. Se falasse dizia qualquer coisa como “vá lá, despachem-se; dêm-me um amendoinzito antes que ele volte”. Foi uma imagem que me ficou na retina. Estes primos distantes dos humanos a comportarem-se igualzinho a eles. Ou será que somos nós que nos comportamos às vezes como macacos?

Em Macau temos macacos no jardim da Flora. Pelo menos penso que ainda lá estão. Temos ainda pessoas, muitas pessoas, mais de meio milhão e com tendência a aumentar. Em vez de amendoins, estas pessoas gostam de patacas. Os que têm poucas querem muitas, os que têm algumas querem mais, e os que têm muitas nunca estão satisfeitas. Em comum têm apenas uma coisa: a fome de patacas, e são as patacas a única coisa que os faz sair à rua, bater o pé, sacudir as grades da jaula, pular e urrar. Tal como naquela cena com os macacos a que assisti na infância, há pessoas que apanham todas as patacas, deixando as outras à míngua. Ao contrário dos amendoins, o apetite pelas patacas é insaciável, e os que têm poucas não podem sequer esperar que os mais gulosos fiquem empanturrados e deixem os restantes apanhar algumas.

Macau é um mercado livre, dizem. Viva a liberdade, mas só na hora de fazer dinheiro. Mas do que vos queixais? Todos têm a mesma oportunidade, ora essa. Só que há uma regra de bolso da Economia: “dinheiro chama dinheiro”, e quem tem muitas patacas pode investi-las e obter cada vez mais patacas. Quem não tem o suficiente para investir chupa no dedo. Nem se pode dizer que existe um fosso entre ricos e pobres em Macau, até porque aqui não há assim tantos pobres – valha-nos isso. O que há é um fosso entre os remediados e os estupidamente ricos. E esses são sempre os mesmos, as suas famílias, e eventualmente os seus filhos. É como se o macaco mandão morresse um dia e deixasse lá um dos seus filhos a sacar os amendoins aos outros dois.

A inflação é um fenómeno interessante. No outro dia fui ao mercado aqui atrás de casa, e comprei duas batatas médias, que nem eram grande coisa, e paguei 15 patacas. Ainda me lembro de pagar 12 patacas pelas mesmas batatas alguns meses antes, e 10 patacas o ano passado. Uns dias antes comprei um molho de brócolos pequenos, deprimidos, com um verde já algo pálido, era o que havia ao fim do dia, paciência. Paguei 14 patacas. Fazia algum tempo que não comprava brócolos, mas tinha a ideia que aqueles custariam qualquer coisa como 7 ou 8 patacas; pelo menos esse seria o preço mais que justo. A habitação anda pelas ruas da amargura, com as rendas a aumentar todos os anos, sem que se saiba porquê. Uma renda de 5000 passa a seis mil no ano seguinte, mas é a mesma casa, no mesmo sítio, com a mesma área. Às vezes os senhorios não investem um centavo no imóvel, responsabilizam os inquilinos pelas reparações, e deixam qualquer melhoramento ao seu critério. Tudo aumenta, e porquê?

Não é preciso reunir uma equipa dos melhores detectives para encontrar o motivo. Cada vez que o Governo anuncia subsídios, aumentos na função pública, ou os cheques do plano de comparticipação pecuniária, tudo aumenta. Especialmente no caso dos cheques: vai o Chefe à televisão anunciar o dinheiro grátis, e no dia seguinte tudo aumenta. Há quem considere que esta forma de distribuição das receitas é um caso raro em todo o mundo, especialmente nestes tempos de vacas magras, e que a população de Macau “tem muita sorte”. A verdade é que o Executivo tem capacidade para dar oito mil patacas a cada residente todos os meses, e não apenas uma vez por ano. O problema é que as batatas e os brócolos iam passar a custar 100 patacas ou mais, em vez de 14 ou 15. Pouco importa se atiram dez, vinte ou cinquenta amendoins para a jaula, pois o macaco guloso vai apanhá-los todos, e os outros ficam a coçar as pulgas.

As pequenas e médias empresas têm a vida cada vez difícil, com as rendas absurdas que se vão praticando nos espaços comerciais. Mesmo que um comerciante encontre um buraquinho mais ou menos jeitoso a um preço acessível, o proprietário vai lá espreitar de vez em quando para saber como vai o negócio, qual abutre à procura de carniça. Se a loja está sempre cheia, pimba!, afinca-lhe com um aumento da renda, apenas “porque sim”. O lucro obtido pelo comerciante é fruto do seu esforço, do suor do seu rosto, da qualidade do seu serviço e da sua persistência, enquanto o senhorio não mexeu um dedo, e ainda se acha no direito de meter foice em seara alheia. Aquilo para mim só tem um nome: roubo. Agarra que é ladrão!

Macau é livre. O mercado de Macau é livre. Viva o neo-liberalismo “Macau style”. Viva a liberdade. Yupi! Cheira-me que anda aqui alguém muito enganado quando ao conceito de “liberdade”. Para perceber o que isso é não basta apenas consultar o dicionário. A minha liberdade não me dá o direito de fazer o que muito bem me apetece, entrando pela liberdade dos outros. Liberdade não é apanhar os amendoins todos, e se alguém reclama, dizer: “O que é que querem? Apanho mais amendoins porque cairam no chão da minha jaula, e depois vão cair muitos mais, e toda a gente tem direito aos seus”. Já era tempo deste macaco fazer uma dieta, e deixar os outros engordar um pouco.

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