domingo, 31 de agosto de 2014

Como estou? Mal, e sabe porquê?



O Dr. Jorge Neto Valente é para mim uma pessoa merecedora dos maiores encómios, sempre foi. Não o conheço como pessoa, não sei como é o seu carácter, não me interessa se fulano gosta dele, ou se outrano o detesta, ou sicrano o bajula, e muito menos me interessa o seu passado, se é um anjo, um demónio, um bom samaritano ou um patife, o que fez ou o que deixou de fazer. Julgo ter trocado uma ou duas palavras com ele numa ou noutra ocasião, mas dá a entender logo à primeira impressão de que se trata de um cavalheiro e um homem educado. Cumprimenta-me sempre que me cruzo com ele, o que só por si já o distingue de outros da sua classe que pensam ser "elegante" não se recordarem das pessoas que "não interessam", pergunto-lhe como tem passado, ele idem, e isto mesmo duvidando que ele saiba o meu nome, quem sou eu ou o que faço - e nem precisa de saber, pois aqui a figura pública é ele. É nesse papel de figura pública, nomeadamente como causídico e presidente da Associação de Advogados de Macau (AAM), onde tem dignificado a presença portuguesa no território depois da passagem para a Administração chinesa, e penso que muita gente concorda comigo quando digo que o Dr. Jorge Neto Valente faz-nos falta na posição onde está, de uma espécie de baluarte do segundo sistema, da jurisprudência, do Direito de matriz portuguesa que tem salvaguardado de interferências que o poderiam colocar em xeque, assim como ao nosso modo de vida e pleno gozo das liberdades expressas não apenas na Lei Básica, mas em toda a legislação vigente no território, que a bem ou a mal, é tudo o que temos como garantia. Ou será que é mesmo assim? Se ele me perguntasse hoje como estou, respondia-lhe "mal". Não precisava de lhe dizer porquê, e penso que muito boa gente terá hoje ficado com alguma "azia" do "banquete" que nos foi sendo oferecido a contragosto durante toda a semana, mas como dizem que faz bem desabafar, aqui vai. Com a devida vénia.

Não vou discutir Direito com o Dr. Jorge Neto Valente, pois isso para mim seria suicídio - metaforicamente, é claro, do ponto de vista argumentativo. O melhor mesmo é ser claro e deixar tudo muito bem explícito, que na letra, quer no "espírito". No outro dia conversava com um estagiário seu e dizia-lhe "sim senhor, parabéns, o Dr. Jorge Neto Valente entra sempre em qualquer partida já a ganhar por um a zero". Penso que não é necessário dizer que esta afirmação pode ser mal interpretada por alguns, aliás é mais passível de ser entendida dessa forma, mas naquele momento o meu interlocutor entendeu muito bem o que eu queria dizer, lendo na minha expressão o respeito e até algum orgulho quando me referi ao seu patrono. A verdade é que o Dr. Jorge Neto Valente tem uma experiência, uma sabedoria e um senso-comum ímpares, e é quase impossível fazer melhor que ele naquilo que ele sabe fazer melhor (bonito oxímoro, este que inventei mesmo agora). Contudo hoje, dia 31 de Agosto do ano da graça de 2014 foi o dia em que me desengracei com esta figura que tanto admiro. Devia dizer antes "admirava"? Não sei ainda, fiquemos por "admiro", pois o que me desagradou não foi o lado do Dr. Jorge Neto Valente que eu conhecia, foi o outro lado, o lado que não é o do jurista, do advogado ou do presidente da AAM.

Nesta semana que passou, e entendamos aqui semana pelo período dos últimos sete dias, assistimos em Macau a um sem número de acontecimentos inéditos, quer na história recente, desde a criacção da RAEM, quer da antiga, antes da transferência de soberania. Certo, pode ser que alguém venha com algum exemplo de algo de atroz ocorrido há 20, 50 ou 100 anos, mas certamente que não se terá passado à revelia de tanta coisa que dávamos garantido mas que afinal parece não ser bem assim. Aquilo a que assistimos, basicamente, foi a uma distorção do sistema, a um conjunto de interpretações tão vis, tão torpes e tão denunciadas que nem é preciso ser jurista para perceber que "aquilo não é assim" - ou se é, então estamos bem arranjados. Em vez de sete dias digamos nove, nove dias a contar sa sexta-feira, dia 22, quando algum "génio da lamparina" desencantou um artigo de uma norma jurídica abstracta como o da Lei da Protecção dos Dados Pessoais, e subverteu-o para a norma imperativa como propósito de servir um fim político: eis uma daquelas coisas que eu imaginava fazer o Dr. Jorge Neto Valente subir pelas paredes furioso. Mais sete dias negros, tivemos detenções que noutras jurisdições seriam consideradas arbitrárias, uma acusação de crime tão grave como o de desobediência qualificada e cuja medida de coacção foi a mais leve, e ainda ontem mais uma subversão do Código Penal que levou à detenção de duas pessoas por um período superior a 24 horas, e tudo isto envolvendo polícia, directores de serviços, juízes, enfim, uma lama para onde tudo e todos foram arrastados. Entendi o silêncio do Dr. Jorge Neto Valente como tácito, e seria sensato da sua parte, dadas as circunstâncias, mas hoje esse silêncio foi quebrado, e tudo o que ele tem para nos dizer é: "obedeçam às autoridades".

Se o Dr. Jorge Neto Valente me estiver a ler (não sei se tenho a honra, mas se for para lhe contarem preferia que lesse pessoalmente) certamente estará a pensar: "Mas porque raio havia eu de me pronunciar quanto à legalidade disto ou daquilo se quando tudo o que me perguntaram foi o que pensava das detenções". Exacto, e é por isso que eu admiro o Dr. Jorge Neto Valente, que é um exímio jurista e como tal entende o espírito da lei, mas não espírito da pergunta que lhe foi feita. E não, não se devia pronunciar especialmente atendendo ao espaço e ao tempo onde se encontrava situado, e quem sabe, se estiver para aí virado, nos venha um dia brindar com pérolas de sabedoria em relação à sua perspectiva jurídica dos incidentes que marcaram o final de Agosto de este Verão que tem sido quente. É por demais evidente que o Dr. Jorge Neto Valente não simpatiza com os democratas do Novo Macau, e isso ficou patente desdos os tempos da Assembleia Legislativa, aquando das suas inflamadas discussões com o deputado Ng Kwok Cheong. Deixe-me dizer-lhe uma coisa: se pensa que eu sou um grande adepto deste tipo de chincana política ou simpatizante do Novo Macau (como "case study" são uma delícia, confesso), não sou, de facto, mas aqui entre nós, o que mais lhe aborreceu a si e a muita gente foi eles terem deixado exposta a fragilidade do sistema, diga lá se não foi? Aceito que esteja "farto" destas pessoas que insistem em atrapalhar o funcionamento das instituições. Compreendo, acredite. Mas se quiser saber o que eu penso, prefiro que as instituições não funcionem do que funcionem desta forma. Se pensa que os democratas, essa nódoa no lençol branco da "harmonia" gostam de ser presos, fazem de propósito, e como tal "já tinham cartas preparadas" para entregar a associações de direitos humanos, deixe-me fazer-lhe esta pergunta: quem gosta de estar detido? Sabia que um dos dois activistas detidos no Sábado um deles tem 19 anos? Se já tinham cartas escritas, ainda mais grave se torna, pois sabiam que o sistema ia claudicar e detê-los sem acusação válida ou baseada em pressupostos facilmente desmontáveis. Esse é o papel deles, é isto que eles fazem? Permita-me que o cite: "isso é outra conversa".

Tanto eu como o Dr. Jorge Neto Valente sabemos muito bem que aqui não se deu nenhuma falência do segundo sistema, como alguns apregoam. Tanto eu como o Dr. Jorge Neto Valente sabemos que depois disto não nos arriscamos a que alguém venha buscar seja quem for a casa de detê-lo sem mandato e sem acusação formada. Tanto eu como o Dr. Jorge Neto Valente como grande parte da população de Macau já viu este filme, e toda a gente sabe que o peso e a medida para quem se mete nestas altas cavalgadas da dissidência e do activismo político, quem se opõe abertamente ao regime, é diferente de quem se porta bem ou apenas manda de vez em quando umas "bocas", ou refila nos blogues como eu, que sei até onde vai a corda que estou a esticar. Mas e então o que é suposto pensarmos daquilo que ficou expresso, preto no branco, nas leis que nos diferenciam do primeiro sistema e em que fomos ensinados (ludibriados?) a acreditar, e que fica sempre tão bem nos discursos oficiais? Se os democratas têm uma agenda maligna, era interessante que nós, que só vemos aquilo que nos dão ver, ficássemos a saber, para entender melhor tudo o que se passa à nossa volta. Se as tais garantias do segundo sistema são um logro, e não é suposto levá-las a sério, seria ainda mais útil, pois assim saberiamos com o que contar. É que não é tão definitivo como o Dr. Jorge Neto Valente afirma, que no caso de as autoridades agirem mal temos a possibilidade de contestar; meses de processo, litigação, adiamentos e todo o resto que o Dr. Jorge Neto Valente conhece bem não são nada quando já se passaram um ou dias na cadeia, e agora com o "jeito" que se tem para dar a volta ao texto, e ao espírito, convém lembrar o espírito, muito importante, da lei, pior fica. E é por isso que estou mal, olhe, desculpe, que eu sei que essa pergunta "como está" é meramente retórica, e que é suposto eu responder apenas que "estou bem, obrigado" e ir à minha vida. Portanto desculpe ter feito perder o seu tempo, e já agora deixe-me que lhe devolva a pergunta: "e você, como está?".

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