Assembleia Legislativa: a última fronteira
Faltam três meses para o arranque da campanha eleitoral das eleições para a Assembleia Legislativa, que no dia 15 de Setembro levarão os eleitores de Macau a escolher pela via directa 14 deputados que durante a próxima legislatura de quatro anos ocuparão um lugar no hemiciclo da Praia Grande. A semana passada ficou marcada pela entrega de sete candidaturas nos SAFP, e nas semanas que se seguem outras listas farão a mesma coisa. Aguardam-se eleições muito disputadas este ano, candidatos-surpresa, muita faladura entre sorrisos abertos a mostrar o dentinho branco, e os habituais expedientes que tornam o acto eleitoral um período excepcional para a imprensa e “opinion-makers”. Todos os dias desde o início da campanha até à contagem dos votos são uma montanha russa de emoções, novidades, momentos bizarros e outros mais ou menos cómicos.
Este é o quarto sufrágio desde a criação da RAEM, e as eleições passaram a revester-se de um significado especial desde a transferência de soberania em 1999, consequência do estatuto então adquirido pelo território. Se um dos princípios fundamentais do segundo sistema é de Macau governado pelas suas gentes e com um elevado grau de autonomia, cabe a essas gentes exercer o dever cívico e eleger os seus representantes, a cobro dessa tal autonomia que lhes foi conferida. Pouco importa que as eleições valham o que valem. Ao contrário de outros países, regiões autónomas, territórios, protectorados e tudo mais, as eleições em Macau não resultam na formação de um Governo. Os que mandam serão sempre os mesmos, e o facto da maioria dos deputados da AL ser eleito pela via indirecta e nomeados pelo Chefe do Executivo é uma garantia de que nada é decidido pelos resultados do sufrágio directo. No fundo o povo apenas decide quem se vai abotoar a um tachito janota durante o próximo quadriénio. Como diz um amigo meu que sempre se abstém, “votar é ir dar um emprego àqueles gajos”.
As eleições em Macau dariam para um “case-study” interessante, tal é o carácter especial de que se revestem. As listas concorrentes, que se prevê que serão 15 ou 16, são normalmente apoiadas por plataformas compostas por associações, grupos laborais e de outros interesses. É lógico que quanto maiores forem esses grupos e quantos mais eleitores contarem nas suas fileiras, mais votos essa lista tem. Os sectores tradicionais são compostos pelos operários, um grupo composto pela classe média e média-baixa trabalhadora, com uma forte componente socialista e patriótica, e pelos “kai-fong”, ou “moradores”, uma espécie de “lobby” que protege os interesses da classe média e média-alta que nasceu em Macau com tendências marcadamente bairristas). Outros “habitués” das andanças eleitorais são os democratas do Associação Novo Macau, conotados com pró-democratas de Hong Kong, com um estilo anti-poder muito apreciado pelos eleitores não-afiliados com os tradicionais ou outros sectores profissionais. Uma espécie de contraponto ao estabelecimentismo pró-Pequim que faz a diferença nas ex-colónias agora transformadas em regiões administrativas especiais da R.P. China.
A juntar a estes “gigantes” que têm estado sempre representados no hemiciclo, juntaram-se recentemente outros grupos que se têm intrometido nas corrida às cadeiras da AL. Os funcionários públicos, grupo numeroso e tantas vezes insatisfeito com a marcha da RAEM nos últimos dez anos têm uma lista própria, com bons resultados obtidos nas duas últimas eleições. A Sociedade de Jogos de Macau, representante dos interesses dos trabalhadores do sector do jogo e a segunda maior empregadora no território depois da própria administração tem conseguido eleger um representante. Em 2005 surgiu uma lista com características étnicas, composta por naturais da província chinesa de Fujian, que conta com milhares de naturais e seus descendentes a residir no território, especialmente na zona norte, que “arrasou”quase toda a concorrência, obtendo um inesperado segundo lugar, entrando no mapa político de Macau. Há ainda outros apoiados por bases menos numerosas que dependendo do apoio podem ambicionar a uma representação parlamentar. Muitos concorrem sem grandes ambições, alguns fazem-no para atrapalhar as contas a algumas listas de que secederam. Há um pouco de tudo.
A insipidez dos discursos é uma das coisas que mais salta à vista durante a pré-campanha e a campanha. Entre os sorridentes e diplomáticos candidatos há muitos que não entendem peva de política, e outros que concorrem porque o cargo de deputado é uma oportunidade lucrativa. Existe uma ideia-feita de que o facto de ser deputado abre muitas portas e facilita os negócios, o que tem um fundo de verdade. A própria imundidade inerente ao cargo já deu jeito a muito boa gente. Felizmente tem imperado algum bom senso, e há candidatos com perfil suspeito e discurso de bradar aos céus que dificilmente conseguirão um lugar no hemiciclo. Pena que alguns destes lá cheguem através do sufrágio indirecto, um mecanismo opaco que beneficia interesses económicos que pouco ou nada contribuem para o debate político ou para a realização de alguns anseios da população. A mera presença na AL de alguns deputados eleitos pelo sufrágio indirecto chegam a ser um retrocesso civilizacional de que Macau e as suas gentes de devia envergonhar.
Como já referi, o número de votos depende quase na totalidade do apoio de associações e dos seus membros. Caso fosse dado aos filipinos o direito de votar, elegeriam com toda a certeza um deputado, mobilizando os mais de 10 mil elementos que constituem esta comunidade, na esmagadora maioria composta por trabalhadores não-residentes. Os democratas do NMD, único grupo não afiliado com associações e grupos de interesse, são curiosamente a força mais votada, tendo alcançado o feito inédito de chegar aos três deputados em 2009. Os 27500 votos então obtidos terão partido de eleitores a quem não foi dada uma orientação de voto ou “orfãos” que não se reviam noutra lista que representasse os seus interesses laborais de forma convincente. Em suma o NMD é a coisa que mais se assemelha a um partido político propriamente dito, quer se goste deles ou não. Algumas listas contam com os eleitores afiliados às associações que lhe servem de base, e caso sejam estes em número satisfatório, estão-se nas tintas para os outros. Se eu próprio fosse um empresário com mais de 10 mil empregados eleitores e me candidatasse à AL, estaria a marimbar-me para o resto da população – os meus chegam e sobram para eu ir lá garantir que ninguém põe a colher na nossa sopa.
Certos figurões da nossa praça, alguns com manias de grandeza e a ilusão de que gozam de uma certa popularidade, cometem a audácia de se candidatar à AL, ou pelo menos ponderam fazê-lo no futuro. Criam uma plataforma política, apuram a imagem, afinam a oratória e começam a transbordar de simpatia. Falam de “arregaçar as mangas” e embarcam em discursos populistas, suportados por um programa abrangente, piscando o olho aos indecisos, aos abstémios e até a eleitores com opinião formada que votam noutras listas. Apelam aos tais “orfãos”, ou sectores da sociedade sem representação parlamentar, afirmando serem “os únicos que representam os seus interesses”. É uma escola que em Portugal produziu resultados em tempos com o PSN de Manuel Sérgio, que chegou a deputado como paladino dos velhinhos e dos reformados. Em Macau não chega apelar a um grupo apenas, e quanto mais abrangente for o apelo, melhor. Virgens, carecas, voyeuristas, peixeiras, varredores, taxistas, filatelistas, fumadores ou fotógrafos-amadores podem caber todos no mesmo saco, desde que estejam recenseados (e por acaso referi alguns grupos que são normalmente “esquecidos” pelos habituais candidatos; se quiserem aproveitem a ideia). A fórmula não tem habitualmente muito sucesso, e os tais candidatos oportunistas ficam muito aquém do número de votos suficientes, tiram a máscara e vão à sua vida.
Conscientes do ambiente eleitoralista que a partir de agora se vai intensificar, a Comissão Eleitoral, o CCAC e outros departamentos governamentais começam a preocupar-se em garantir que as eleições são “limpas”, apelando à transparência, dando a entender que as eventuais ilegalidades cometidas na “caça ao voto “ serão punidas de acordo com a lei. É com um sorriso que encaro as recomendações desta “polícia eleitoral”. O mesmo sorriso que nos sai espontaneamente quando ouvimos uma criança dizer ingenuamente que vai mudar o mundo quando for crescida. A compra de votos, as jantaradas, as boleias até à mesa de voto e outros golpes baixos são perpetrados por especialistas, alguns deles recrutados de fora do território, e sabem de cor como ludibriar a mais rigorosa fiscalização. A corrupção eleitoral é um pouco como a pirataria informática: sempre um passo à frente de quem a combate. O ideal passava por educar os eleitores no sentido de valorizar o seu voto, de os fazer crer que vale mais que uma mera jantaradas ou um “lai-si” de quinhentas patacas. Mas como, se como já referi, o voto não decide nada por aí além? Seja como for vamos ficar atentos à medida que o dia 15 de Setembro se aproxima. Pelo menos há animação nesta terra, mesmo que não se faça política de jeito. Mas isso seria pedir muito.
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