sábado, 29 de junho de 2013

A diferença é Macau


Artigo publicado na edição que quinta-feira do Hoje Macau. Já agora parabéns ao Hoje pela nova edição online, revista e aumentada.

Parte I: O luxo

Macau, Região Administrativa Especial da República Popular da China, ano de 2013. Milhares de turistas atravessam todos os meses as Portas do Cerco, chegam ao Terminal Marítimo do Porto Exterior, aterram no Aeroporto Internacional na Ponta da Cabrita, na Taipa. Nos aterros do NAPE brilham os neons dos casinos, os letreiros luminosos das lojas de penhores e das casas de câmbio. Dentro dos hotéis de cinco estrelas proliferam os espaços comerciais das mais conhecidas multinacionais, onde se encontram roupas, malas, relógios, joalharia e outros adereços a preços proibitivos para o cidadão médio local. Milhares de trabalhadores residentes e outros tantos não-residentes ganham a vida nos restaurantes, bares, saunas, clubes nocturnos e outros locais elegantemente exclusivos, ou atrás da mesa da roleta e do Bacará. Pelos passeios largos pontuados por praças ajardinadas circulam os visitantes, os jogadores e alguns poucos curiosos. Os novos ricos topam-se à distância: sacos de compras, vestuário primando pelo ostensível, pautado por combinações aberrantes e traços de ruralidade que nem a pilhéria do neo-capitalismo conseguem disfarçar. Pelas horas do lobo atacam as mulheres da vida e espreitam os agiotas; horas antes alguém havia furtivamente espalhado pelo chão panfletos que publicitam favores sexuais. Na Taipa, na “strip” do COTAI, mais do mesmo. Autocarros a rodos depositam mais turistas que contemplam o triunfo do luxo e da abastança onde em tempos só existia mar, e que as mãos dos pobres ergueram por ordem dos ricos, para que estes ficassem agora ainda mais ricos. Estupidamente ricos. Uma pedra da calçada vale mais do que muitos ganham num mês com o suor do seu rosto. Investiram-se e investem-se milhares de milhões para se obter um retorno de milhões de milhões. A dança do cifrão é executada a um ritmo alucinante. Batem-se recordes de receitas, mesmo contra as previsões dos mais pessimistas. Aposta-se para ganhar, e as “odds” são de muitos contra um. O luxo está bem e recomenda-se. Que se acendam os “robusto” com notas de mil.

Parte II: O lixo

Macau, Região Administrativa Especial da República Popular da China, ano de 2013. Milhares de cidadãos tomam de assalto a cidade dos homens cedo pela manhã, longe dos néons, das lojas com nomes italianos e franceses, das fontes luminosas e musicadas. Os passeios que calcorreiam a caminho do trabalho são estreitos, e nem uma palmeira à vista. Debaixo do calor tórrido, do sol impiedoso ou da chuva torrencial seguem a mesma direcção de sempre, atravessando as ruas velhas, os prédios antigos e decadentes, os toldos improvisados, dos latões de lixo fétidos. Desviam-se dos vendilhões, dos carrinhos de mão, dos baldes de flores, das tendinhas de massa frita, os caixotes de fruta no caminho, das obras que se vão fazendo aqui e ali, cuja banda sonora de britadeiras e betoneiras são o ruído de fundo matinal a que já se vão habituando, mesmo contrafeitos. Vastas vezes atravessam a estrada à margem das regras para cortar caminho. Ouve-se a buzina de um carro. Mais à frente outra obra, mais buracos abertos no chão. A meio metro dos ombros passa um autocarro, roncando e fumegando libertino e imperial. Os motociclos tentam imitá-los, e em nada lhes ficam a dever em termos de poluição sonora e ambiental. O ar que se respira não é o dos hotéis de cinco estrelas do outro lado da batalha, “smoke-free” e cheirando a novo. Não é com os novos-ricos que se cruzam, mas com os velhos pobres; gente magra e cansada, roupa coçada, chinelos de plástico, toalha a sair da camisa para suportar o calor, homens sem camisa, mulheres bronzeadas, chapéu de palha, ar cansado do peso da rotina do pátio, do beco, da rua, do bairro. A horas certas as ruas são invadidas por centenas de estudantes, grandes grupos de uniformes previsíveis, batas brancas encardidas, sapatos pretos enrugados e gastos. É o lixo no seu esplendor, o mundo do povo miúdo com olhos que brilham com a perspectiva do cheque anual que os generosos senhores do Governo começam a distribuir este mês.

Parte III: Cruzam-se os mundos

Graças a Deus ou ao Buda pelos “tai-lous” americanos e pelos oligarcas do burgo que embelezaram grande parte da nossa Macau – mesmo que essa parte tivesse sido na sua maioria “inventada”, roubada ao mar – e ainda nos disponibilizam uma raspa do limão dos milhões de milhões que vão facturando. De vez em quando cruzam-se os dois mundos, um lado e o outro, quando aos fins-de-semana e dias feriados se veste uma fatiota mais catita e se faz um faustoso repasto nos amplos “buffets” da Disneylândia casineira, e a comida a granel por centena e meia de paus “com direito a uma bebida” dá a sensação que se “pertence” à elite. Afinal foi pela porta da frente que se entrou, como gente grande, e não pelas traseiras como os serviçais. Se estes fossem dois desenhos daqueles que encontramos na página dos passatempos dos jornais que nos desafiam a procurar as diferenças, bastava desenhar um grande círculo à volta de um deles. É esta a grande diferença. A diferença é Macau.

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