quarta-feira, 5 de junho de 2013

O dia seguinte


Assinalou-se ontem mais um 4 de Junho, aniversário do massacre da Praça de Tiananmen em 1989, dia em que o regime esmagou o movimento estudantil que ocupava o salão de visitas da capital chinesa exigindo mais abertura e o respeito por algumas liberdades que ainda hoje não estão ao acesso da população mais numerosa do mundo. A forma como encaro os acontecimentos daquele dia é do ponto de vista de um estrangeiro, da mesma forma que um não-português entenderia o significado do nosso 25 de Abril. Foi só depois de ter vindo viver para Macau em 1993, quando a memória dos incidentes ainda estava bem fresca, que me apercebi da verdadeira dimensão e importância do acontecimento. O massacre de 4 de Junho consta da galeria da História recente deste imenso e complexo país que é a China, ao lado da Grande Marcha, da Revolução Cultural, do Grande Salto em Frente e da própria criação da RPC. Apesar de ser uma data “non grata” para o regime, não deixa de se revestir de grande importância. É um marco incontornável dos últimos 70 anos desta civilização já milenar.

O actual estado de paz e ordem que se vive actualmente na China será um dos mais longos de sempre. O país depende de um frágil equilíbrio de factores que o deixam sempre à beira do caos, e se há algo que a sua História nos ensina é que sempre existiu uma enorme sede de poder, de domínio, de protagonismo, de busca incessante pela glória e pela fortuna a todo o custo. Quando Mao unificou finalmente a China em 1949, ganhou um lugar no restrito grupo de heróis. A sua imagem representa ainda a união do povo chinês, que finalmente se levantou e partiu em busca de uma afirmação que vai agora paulatinamente obtendo. O sistema socialista, se ainda o quisermos chamar assim, pode estar longe se ser perfeito, mas é pelo menos o que produziu resultados. Na memória fica o discurso do anterior presidente Hu Jintao por altura do 60º aniversário da RPC: “A persistência produziu resultados”. De facto, a China é actualmente a segunda maior economia do mundo, graças à adopção progressiva de uma estratégia de mercado que levou a décadas de crescimento anual na ordem dos 8%. Valeu a pena insistir, portanto. Pelo menos para alguns.

O massacre de Tiananmen terá sido uma pedra no caminho do progresso. Ao contrário do que muitos temiam, o “aftermath” do 4 de Junho não se traduziu num retrocesso ou no ressurgimento da ala mais conservadora do Partido Comunista Chinês, de orientação Marxista-Leninista e Maoista. Não é de todo difícil de entender que o regime se abstenha de comentar o massacre, ou que insista em manter na obscuridade os factos, cobrindo num manto de silêncio o que realmente aconteceu nesse dia. Talvez seja mesmo verdade que há esqueletos que ficam melhor guardados no armário. A persistência de alguns países estrangeiros e associações de direitos humanos em que Pequim abra de vez o dossiê Tiananmen é vista como “ingerência” nos assuntos internos do país. Continuo a acreditar, não sei se ingenuamente, que um dia teremos a versão completa dos acontecimentos. Resta aguardar pelo momento que o regime considerar certo. É uma fruta que se colherá quando estiver madura, recorrendo ao simbolismo próprio da cultura chinesa. Por enquanto o melhor é nem falar no assunto.

Se na China continental o sistema levanta a guarda cada vez que o calendário marca o quarto dia do sexto mês do calendário civil, apertando a segurança e endurecendo a censura, as regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau comemoram a data à luz das garantias que o segundo sistema lhe conferem. O convívio entre os dois sistemas, cujo início se reporta a 1997 com o regresso de Hong Kong à China, tem decorrido de forma pacífica, apesar de alguns sobressaltos. O facto de existirem grupos que acusam Pequim de interferir em assuntos internos das RAEs, a quem as respectivas Leis Básicas conferiram “um elevado grau de autonomia”, é a prova cabal de que existe liberdade de opinião e direito ao contraditório. No âmbito do primeiro sistema a simples existência de grupos pró-democracia opositores ao partido único seria suficiente para que os seus membros acabassem na prisão. Mesmo a legislação produzida pelo artigo 23, que levantou algumas dúvidas quando aprovada em Macau, não passou disso mesmo: legislação. Na RAEM ainda ninguém foi acusado de secessão, traição ou outro delito com um desses nomes feios. E vozes dissonantes é o que não tem faltado deste lado.

Fiéis a uma prática que se iniciou ainda durante o domínio das potências estrangeiras que os administravam, Macau e Hong Kong assinalam todos os anos o 4 de Junho, lembrando as vítimas e recordando a importância dos valores pelos quais os jovens estudantes deram a vida, se bem que em vão. Em Hong Kong, onde existe e sempre existiu uma cultura democrática, uma identidade que diferencia os chineses locais dos chineses do continente e uma veia contestatária afirmada, o 4/6 leva à rua dezenas de milhares de manifestantes, em números que nem o passar dos anos e o distanciamento cronológico dos eventos parece diluir. Entre os cem mil que marcham pelas ruas da RAEHK nesta data estarão muitos jovens que ainda não tinham nascido em 1989. É a própria força dos valores em causa e a capacidade de mobilização das forças que velam pela manutenção do “status quo” que não deixa que Tiananmen caia no esquecimento. São os pais que transmitem aos filhos valores fundamentais, tão importantes que ignorá-los é deixar em xeque a própria identidade, um estilo de vida que lhes confere uma igualdade de direitos, as garantias que nunca devem ser dadas por adquiridas. É preciso lutar pelos direitos adquiridos, demonstrar que são estimados e que a população está atenta a eventuais atropelos.

Em Macau tudo isto é encarado de um jeito diferente, mais passivo, um pouco à semelhança da própria pequenez do território. A cada 4 de Junho gosto de discutir o tema com os meus colegas chineses, tomar-lhes o pulso e saber exactamente de que forma pensam preservar os direitos de que usufruem, e que certamente muitos dos seus “patriotas” do outro lado da fronteira gostariam de usufruír. Dá-me a sensação de que o assunto os incomoda, e apesar de gostarem de me responder e expressar a sua opinião, fazem-no com reticências. A maioria deles remete-me à minha posição de “estrangeiro ignorante”, numa atitude muito “zen”, e dizem-me que “não entendo os chineses” – e não é graças a eles que vou passar a entender, pelo menos neste particular. O que existe realmente é uma atitude palaciana, com um medo inerente de ser visto como um “rebelde”, sofrer represálias e ser afastado do acesso a oportunidades que ironicamente a liberdade de que gozam lhes proporciona. É complicado fazê-los ver que as liberdades e garantias trazidas pelo segundo sistema não passam apenas pelo mercado livre ou o direito à propriedade privada. Sem alguns dos valores que se inibem de defender ou sequer comentar, nunca teriam dois ou três imóveis, uma conta bancária recheada, ou sequer a liberdade de viajar onde muito bem lhes apetecer ou ter quantos filhos entenderem.

É um prazer ouvir na televisão o que pensam os honconguenses da importância da data que ontem se comemorou. Fico comovido ao ouvir jovens de 20 anos ou menos falar de democracia, de liberdade de expressão, de imprensa e de associação. Em Macau ninguém se lembra de fazer o mesmo, saindo à rua e perguntando à população o que sente sobre estes valores que os vizinhos do lado não se intimidam de expressar alto e bom som. Aqui um estudante dificilmente daria a cara, temendo ser referenciado e mais tarde ostracizado, vendo reduzido o acesso ao mercado de trabalho ou limitados os seus direitos civis – mesmo que esse medo seja de todo injustificado. O silêncio é sepulcral, e incomoda. Mais uma vez o Ou Mun, um grupo de patriotas de gema que por azar publica o jornal mais lido do território, exerceu o seu direito à reserva e ignorou o 4 de Junho. Eles lá sabem. Curiosamente deram grande destaque à actual situação na Turquia, onde as autoridades têm tido problemas em conter a fúria da população, que tem levado o caos às ruas de Istambul. Os turcos não vêem com bons olhos as políticas do Governo liderado por Recep Ordogan, que acusam de ter uma agenda que leva à gradual islamização do país, que desde a instauração da república por Ahmed Ataturk adoptou o secularismo, uma separação plena em estado e religião. Mais do que a evidente coragem do povo turco em manter a fórmula do seu fundador e recusar-se a sacrificar direitos que certamente o Islão não lhes reconheceria, o Ou Mun mostra o caos. Pedras arrancadas da calçada e arremessadas contra as autoridades, greves, incêndios, caos. Olhem bem para esta “democracia” meninos. É isto que querem? Portem-se bem e façam os que vos dizem. Do resto encarregam-se os nossos líderes, que sabem o que fazem.

2 comentários:

Anónimo disse...

ha uma coisa que nao consigo compreender. Dizem que os chineses nao estao preparados para a democracia. Mas se europeus, americanos, russos, indianos, japoneses, coreanos, tailandeses, malaios, indonesios, paquistaneses, iranianos, muitos paises africanos e sul americanos etc etc etc , caramba, ate chineses de taiwan conseguem viver (uns melhor outros menos bem) numa sociedade regida por principios democraticos, por que raio os chineses nao podem seguir o mesmo caminho e eleger os seus lideres?? sao menos que os outros? alguem pode explicar?

Bloom disse...

Boa pergunta!
Até o Burkina Faso tem sufrágio universal!! É uma democracia jovem e cheia de problemas mas que tem, tem...

Os chineses não podem ter porquê?