Foi há 39 anos que Portugal iniciou um novo ciclo na sua história. Depois de uma atribulada Primeira República, seguiu-se o autoritarismo imposto pelo Estado Novo, que mergulhou o país em quase cinco décadas de marasmo. A Revolução dos Cravos trouxe o regresso à discordância e ao divisionismo, com os Governos a sucederem-se até ao evento do cavaquismo, que trouxe dez anos de governação estável, até ao estado de coisas em que o país actualmente se encontra: endividado, arruinado e decadente. Ou seja, o regresso à normalidade. Um alívio saber que concordamos em discordar, fiéis à nossa natureza. E qual é o mal? Afinal estamos vivos. Tesos mas vivinhos da silva.
E agora pergunta-me o prezado leitor, ao estilo do pitoresco jornalista Baptista-Bastos: “ó Leocardo, onde é que estavas no 25 de Abril?”. Estava na barriga da minha mãe, ora. Só não vim para a rua ajudar a derrubar o regime porque era um feto na quarta ou quinta semana de gestação. Não me venham dizer que não falo com conhecimento de causa. Fui concebido na recta final da longa noite do fascismo. Sou o produto de uma das últimas quecas dadas durante o Estado Novo. Enquanto os meus pais se divertiam na alcova, estavam os nossos soldados a lutar no Ultramar. A minha gestação foi delirante, repleta de eventos de fazer arrepiar os cabelos. Nasci em plena liberdade, mas sou um revolucionário uterino.
O 25 de Abril de 1974, data que hoje comemoramos (enquanto a troika ainda nos deixa) foi um acontecimento muito kitsch. Tanques na rua, cravos nos canos das armas, cânticos de intervenção, gajos cabeludos e de bigode na rua, calças de boca de sino, tudo documentado a preto e branco. Se estes personagens vivessem nos dias de hoje, seriam facilmente objecto de galhofa por parte da nova geração. “Ei man, olha-me para aquele cromo! Ganda cena, ouve!”. Os jovens adultos ainda conseguem identificar a moda graças à série “That 70’s show”. Os mais jovens sabem apenas que o 25 de Abril “é feriado”. Zeca Afonso e os restantes abrileiros (os que ainda estão vivos) pertencem a um passado distante. São uma nota de rodapé nos currículos escolares.
O periodo pós-revolucionário, que ficou muito adequadamente conhecido por PREC (Processo Revolucionário em Curso) foi dado a toda a espécie de excessos. Pintavam-se murais, faziam-se greves, criavam-se sindicatos, nacionalizava-se quase tudo, e o país arriscou uma Guerra Civil e uma ditadura comunista ao mesmo tempo. A adrenalina estava ao máximo. Era pleno Verão Quente e estava eu a exigir a chupeta de braço esquerdo em riste, e cada fralda cagada era um comentário social e politico. Cada vez que ouvia falar do camarada Vasco saía mais uma fornada de cócó. Era um pequeno reacionário. Ainda bem que não me lembro de nada disto, e por duas razões: primeiro porque era uma chatice, e depois porque significava que seria mais velho que os 38 anos, 4 meses e 18 dias que tenho hoje. Livrei-me de boa.
Comemorei vários feriados do 25 de Abril tecendo loas aos paladinos que levaram a cabo a tarefa de soltar o país das rédeas do fascismo, e não me arrependo de nada. Apesar de simpatizar com a malta comuna que nunca está contente com nada, nunca fui realmente de esquerda, nunca dei o corpo ao manifesto por nada, nunca senti o perigo inerente à contestação e ao contra-poder, mas e depois? Chamem-me parvo, se quiserem. Prisões, tortura e martírios são daquelas coisas que me incomodam. Implicam longos períodos sem tomar banho ou trocar de camisa. Prefiro assistir às revoluções pela televisão. Parabéns aos gajos que se sacrificaram pelos nossos direitos, mas a mim quem me tira uma boa noite de sono, tira-me tudo.
O 25 de Abril e o seu epílogo deixaram sobretudo um enorme património cultural. O nosso património artístico, cultural e lexical ficou a ganhar com a revolução. Por muito que não concordemos com a mensagem, não podemos deixar de apreciar as canções de intervenção, a poesia, os murais do MRPP, a banalização da palavra “merda”, que até já consta de qualquer dicionário da nossa língua, toda essa manifestação do que antes estava esmagado e oprimido. E qual é o mal? Estávamos realmente melhor antes de podermos dizer “merda”? Ou de poder escrever “merda” sem levar com o pau da censura? Merda para isso. Que merda era essa? Ai a merda. Merda, merda, merda.
Mesmo que a Revolução dos Cravos pareça cada vez mais um paradoxo distante (arrisco a prever o seu esquecimento dentro de algumas décadas), é preciso lembrar hoje esta data como o dia em que a malta deu um murro na mesa. Fartou-se daquela merda toda (aí está…) e disse basta. É uma mensagem que podemos passar aos mais novos, e que lhes pode ser útil no futuro. Se um dia ficarem fartos desta merda toda, lembrem-se daqueles cotas cabeludos que vestiam roupas largas como os palhaços, e façam também vocês o vosso próprio 25 de Abril. E não se esqueçam que no calendário esta data é assinalada como “Dia da Liberdade”. E a Liberdade é um valor que devemos prezar. E quem pensa o contrário, que vá simplesmente à merda.