Texto publicado na edição de quinta-feira do Hoje Macau.
I
Se olhares demoradamente para dentro do abismo, o abismo olhará para dentro de ti – Friedrich Nietzsche, “Para além do bem e do mal”.
Estão a decorrer por estas calendas as Linhas de Acção Governativa (LAG) para 2013. Tempos houve em que eu seguia com muita atenção esta espécie de programa do Governo para o ano seguinte. Interessava-me, porque pensava que tinha a ver com o meu futuro próximo. Com o nosso, com o de todos, em suma, é suposto ser uma coisa séria. O que vai fazer o Executivo da RAEM para resolver os problemas com que Macau se debate? O que vai fazer para melhorar a vida da população? Acabei por me desiludir, e deixei de acreditar nas LAG. Passaram a ser uma parada de amanuenses enfatiados que debitam promessas vazias, recitam textos que não são da sua autoria, e nos quais nem eles próprios acreditam, e nem chegam a prometer mundos e fundos, tal é a ambiguidade daquilo que papagueam. As tais perguntas dos deputados, que têm supostamente um papel fiscalizador da acção do Governo, são um espectáculo que se repete ciclicamente. É como ver o mesmo filme muitas vezes, já sabemos o que vai acontecer a seguir, e às vezes até decoramos as falas. O problema é que este não é lá um filme muito bom. Algumas perguntas parecem coreografadas, as críticas parecem mordazes mas não chegam para ser levadas a sério, enfim, são tudo bons rapazes e raparigas, cada um com o seu monopólio na barriga. Esta é uma das poucas situações em que não me resta senão concordar com aquela fatia da população amorfa que não liga a política, porque “tem mais que fazer”. As LAG deixaram há muito de servir o seu propósito, que seria de elucidar os cidadãos para o que os espera. Todas as decisões que realmente interessam são urdidas espaçadamente ao longo do ano, ao sabor dos ventos, ou dos assomos de generosidade do Governo. Os intérpretes são sempre os mesmos, tanto que a situação já chegou ao ponto do tédio. Macau deve ser, depois da Coreia do Norte (ou nem isso) o lugar do mundo onde os dirigentes mais tempo se mantêm no poder. Se saem é para outro cargo idêntico, superior, recém e especialmente criado como um fato num alfaiate, ou simplesmente simbólico – caso o menino se tenha portado mal e precise de ser posto na “prateleira”, sem que no entanto “perca a face”. Uma autêntica dança das cadeiras. Por muito mau trabalho que façam, por muito que sejam criticados, por mais escândalos, gafes ou nepotismo que se evidencie, estão ali de pedra e cal. E parece que estão para ficar, “no matter what”. A única excepção a este carrossel das vaidades foi a de um certo ex-secretário que foi transferido para o Estabelecimento Prisional de Macau, em Coloane, e não foi para um cargo administrativo. Mas isto não se volta a repetir não senhora, e é melhor não falar nisso. Chiu que estamos a ser filmados e escutados.
E o que pode afinal a população esperar, não destas LAG, mas do próximo ano civil? Mais do mesmo. Os cheques (sempre anunciados antes do 1 de Maio, para esfriar os ânimos), os subsídios, as “injecções” no tal fundo de segurança social, essa miragem distante, os descontos e as esmolas. As mesmas migalhas que sobram do banquete dos faustosos. Resolver os problemas imediatos como a habitação e a especulação imobiliária – problema que podia muito bem ser resolvido com a construção dos milhares de fogos anuais que o Governo vem prometendo desde 2000 – a inflação e outros, “moah”. Desculpem lá mas não pode ser, isso é muito difícil, é mais complicado que resolver um cubo de Rubick, e pronto, sei lá, boa sorte na próxima reencarnação. E o povo lá vai, cantando e rindo, de ombros descaídos e um sorriso amarelo, agradecendo a esporádica generosidade destes senhores que afinal “sabem o que fazem”. Uma população lá no fundo descontente, mas que sofre de falta de um par deles no sítio para dizer basta e dar um murro na mesa. Se a sociedade de Macau fosse representada por um corpo sólido, seria um cone. Uma extremidade aguda onde cabem os poucos elitizados e as suas famílias, e uma base de desenrascados que vai ficando cada vez mais larga. Perdoem-me o pessimismo, mas assim caminhamos para o abismo, e cairemos nele sem que demos por isso – se é que já não estamos a cair. Perdoem-me ainda o desinteresse pelas LAG, que afinal são as “linhas por onde nos cosemos”, usando o bordão jornalístico, mas o que me preocupa é que cidade vamos deixar para os nossos filhos, engolindo estes sapos, sempre os mesmos, todos os anos. Mas pronto, com anestesia, que sempre dói menos.
II
Depois de amanhã, dia 1 de Dezembro, passam cinco anos desde que dei início ao “Bairro do Oriente”, um espaço que chegou a ser de referência na blogosfera de Macau. Herdeiro do blogue anterior, o “Leocardo” (que teve início em Março de 2006), o BDO é a menina dos meus olhos, o meu jardim à beira-mar plantado, o espaço onde exteriorizo tudo o que sinto por esta terra que amo e dou asas aos meus devaneios sobre os mais diversos temas. Quando há alguns meses dei a cara e saí debaixo da capa do anonimato, foi um alívio. Já não precisava de fingir ser o que não sou, e podia encarar de frente as inúmeras ameaças que recebi, entretanto nunca concretizadas. Quando o director deste jornal me convidou para assinar este espaço semanal, não pensei duas vezes. Este jornal foi sempre, na minha opinião, o espaço mais livre na imprensa do território – sem querer menosprezar a restante imprensa em português, que se destaca da imprensa em chinês, que não só muitas vezes falha em informar condignamente o grosso da população, que só entende a língua chinesa, como ainda pactua com o poder, em nome da manutenção de subsídios e outras vantagens.
Sempre fui e sou aberto a todas as opiniões, correntes de pensamento e ideologias, desde que não vão apenas pela via do insulto gratuito. O que me incomoda mesmo é o mono-pensamento, a concordância absoluta, a unanimidade que por aí grassa. O contraditório excita-me, faz-me subir a adrenalina. Contudo, tanto no blogue como no dia-a-dia, continuo a sentir o desprezo e a encarar a arrogância de certos senhores, auto-intitulados donos da razão. São sobretudo pessoas mais velhas, muito “old school”, que julgam que a idade ou o tempo de permanência no território é um posto, e que lhes dá autoridade para serem tidos e ouvidos antes de mais ninguém, e que ainda tratam a coisa como muito natural, muito noblesse oblige. Para estes senhores dinossauros, a figura do Leocardo vai contra as suas convicções, sejam lá elas quais forem. Isto foi gente que viveu no tempo da ditadura, da censura, podiam ser presos por dizer o que pensavam, sim senhor, têm “estórias” muito giras para contar ao netos, se eles estiverem mesmo interessados. Talvez por essas e por outras a minha pequena brincadeira caiu-lhes mal, ou quem sabe se não me reconhecem legitimidade, ou como um deles uma vez disse, falta-me “formação técnica”. Sim senhor, que isto é gente não só com uma vasta experiência, mas ainda por cima com um currículo e habilitações dignas de um Nobel. Para estes ilustres sabichões tão senhores do seu nariz, deixo-vos com uma passagem de “Rei Lear”, da autoria de um dos vossos contemporâneos, o tio Shakespeare: “Os velhos desconfiam da juventude porque foram jovens”. Neste caso foram há tanto tempo que se calhar já nem se lembram…
Sem comentários:
Enviar um comentário