segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O homem que mordeu a dona do Farrusco



Estarão todos certamente recordados deste incidente, este Verão, em que o país se indignou com uma alegada tradição realizada anualmente na aldeia de Mourão, concelho de Vila Flor, distrito de Bragança, que consistia na queima de um gato. Recordam-se? Claro que não! Aquilo foi o Woodstock do insulto, da boçalidade, do provincianismo e do disparate, e depois passou.Nem a isso chegou, sequer. Foi só mais uma etapa dos festivais de Verão deste ano.


Velha do caralho a arder..."atrazada" mental...site de putas...ameaças de morte, assédio, violência, ah! Vaca na cadeia! De todos o mais sensato - deve ser o supra-sumo da educação e do civismo nacionais, aquele...nome esquisito, o segundo a contar de baixo. De facto convém entender o que está aqui em causa: o crime de maus tratos a animais. Mas isso parecia não ser suficiente, pois a indignação pelo acto cometido por aquelas pessoas daquela aldeia que nunca ninguém tinha ouvido falar até então, transformou do dia para a noite um país de brandos costumes num covil de assassinos vingativos com sede de justiça, num estado de ebulição tal, que era até permitido "temperar" os factos de modo aliciar mais apoiantes para o linchamento dos aldeões de Mourão. Sim, linchamento, para não lhe chamar coisas piores. Aqueles comentários ali em cima são um doce comparado com centenas de outros que vi sobre a notícia, e não era para menos.


Aqui está. Não vou voltar a ter esta discussão porque ficou eventualmente estabelecido que eu tinha razão: este título, "gato queimado vivo", dá a entender que o gato morreu - estava VIVO, foi queimado, deduz-se que morreu. Quando nos queimamos numa mão dizemos "queimei-me" ou "fiquei queimado", e não "fui queimado vivo", pois se antes estava e agora continua vivo - como foi  o caso do gato - torna-se desnecessário fazer essa referência, pois está implícita, certo? Óptimo. Além disso, e se olharmos para a notícia ali no Público, que é idêntica a de muitas outras publicações da imprensa portuguesa que deram dela conta, não nos é dada uma única pista de que o gato sobreviveu - "queima do gato", "gato a arder", dá tudo a entender que o bichano virou cinza. E quem ia duvidar? Não existia uma única imagem do animal após ter sido submetido à tradição, e o vídeo que tinha andado a circular nas redes sociais não era esclarecedor quanto à sua integridade felina. Lá existir, existia, de facto houve uma imagem aterradora, engendrada por alguém mal intencionado, e que mostrava um gato que não aquele exibindo queimaduras graves, e que andou a ser divulgada como sendo autêntica. Ah, querem ver?


O resto é conversa, salvo seja, pois aqui a conversa é outra. Aquela imagem é falsa, lógico, e eu teria vergonha de recorrer a esta baixeza para convencer seja quem for, do...do quê? De que é legítimo juntar-me à turba ululante como aquela que vimos em cima, que usa obscenidade como se fosse pontuação, e como se não bastasse o crime de maus tratos e abandono a animais vir contemplado agora no Código Penal, ainda se considera legítimo utilizar outro crime, o de ameaça de morte, para convocar mais adeptos deste...deste...deboche! Tenho direito de me sentir ultrajado, pois nunca disse nem sequer insinuei que "estava tudo bem" porque o gato não morreu, mas sem dúvida que foi com recurso a essa mentira (permitam-me que chame as coisas pelo seu nome) que obtiveram uma boa parte do apoio a este "linchamento virtual" da população de Mourão. Além disso pedi o "link" não com o pretexto de desmentir o sr. Miguel Ricardo, mas não publico provas que não possam ser verificadas como autênticas. Eu considero esta causa da defesa dos animais contra os maus tratos suficientemente legítima para assentar apenas na verdade, nos factos, nas provas, e caso tenhamos esta conjugação, assim como no Direito Penal aplicado aos humanos, temos caso. Mas como se não bastasse isso...


E aqui está o problema desta causa, a tendência para o extremismo. Este Bruno Braga, que por acaso tentei contactar durante o ponto alto desta controvérsia, faz aquilo que para mim só tem um nome: terrorismo. Eu não aprovo os métodos de associações como a PETA e afins que colocam os animais ao mesmo nível dos humanos, atribuindo-lhes os mesmos direitos. Eu tenho direitos e tenho responsabilidades, pois consigo racionalizar estes conceitos, ao contrário de um animal não-racional, que no limite - e vamos aqui perder a cabeça - seria preso no primeiro dia de exercício dos seus "direitos plenos". Não vou aqui alargar-me em exemplos como, mas é algo que estimula a imaginação. Agora quando este energúmeno vem com este tipo de fraude, está a desvirtuar qualquer princípio que prezemos como válido e fundamental - até dá a entender que ganharia mais se o bicho morresse! 


E é aqui chegamos ao ponto principal. Eu sou mero "blogger" amador, valha isso o que valer, e não ganho um tostão com isto, portanto não vale a pena acusar-me de ter uma "agenda", ou procurar "projecção", porque como vamos ver mais à frente não foi bem isso que aconteceu. Este texto publicado pelo humorista/argumentista/radialista/etc. Nuno Markl foi um dos vários que fui lendo para me inteirar melhor do impacto mediático do "drama" do gato de Mourão, e a este ponto já precisava da perspectiva de alguém com uma certa influência no segmento mais jovem da opinião pública em Portugal, e pelo pouco que conhecia do seu trabalho e a respeitável legião de seguidores que adquiriu, Nuno Markl pareceu-me a pessoa indicada. Agora juro pelo que quiserem que não fazia ideia da actividade paralela do artista como activista dos direitos dos animais, ou pelo menos apoiante da causa, pronto - recordo mais uma vez que vivo em Macau há mais de 20 anos. Talvez por isso tenha sido apanhado de surpresa com a nítida personificação que é feita do animal, e a bestialização a que são submetidos os habitantes da aldeia onde foi quase martirizado, pelo menos é o que dá a entender o texto com passagens do calibre de "foge em chamas/o povo ri". Isto nunca poderia ser positivo, dada a animosidade que já se sentia contra os humanos desta história, mas pelos vistos ainda contribuiu para piorar as coisas. Vejamos alguns dos comentários: 


E aqui está. Eu sei que o Nuno Markl não tem queda para profeta, e se há algo que com toda a certeza partilhamos é a firme defesa do direito à liberdade de expressão. Não sei o que ele pensa daquilo que alguns dos seus fãs propõem nos comentários ali em cima, e até é possível que considere algumas das reacções mais fortes nada mais que meros desabafos. No entanto, e olhando para lá daquilo que a minha janela me permite observar, tentei colocar-me na pele de um mourense que nada teve a ver com o episódio do gato, e pensar como perante tudo isto me sentiria se precisasse de sair da minha zona de conforto para uma outra mais cosmopolita, e aí fosse identificado como habitante da aldeia que acabara de ficar tristemente célebre, andando nas bocas do mundo pelos piores motivos. Agora percebo que isso não seria um problema de todo, e creio que desempenhei o papel de humilde aldeão quase na perfeição, tal foi a minha ingenuidade.


E assim saiu o artigo, a que dei o nome de Mas o gato-to não morreu-eu-eu, por razões que penso ter deixado claras mais acima, e não por querer menorizar ou relativizar coisa alguma. Assim, depois de um primeiro dia marcado pela normalidade, eis que noto um súbito aumento no número de visitas, o que não sendo frequente não é de todo anormal, mas julguei ser de alguma notícia sobre o Toy (sim, tive o exclusivo de anunciar ao mundo que o cantor não morreu, numa das vezes que "morreu"), ou outra que subitamente tenha levantado interesse por culpa de uma palavra da semana qualquer que constava do título de um artigo antigo, mas foi aí que me apercebi de um número anormal, aí sim, de comentários a aguardar moderação. A maior parte destes continha um "link", que se apresentava com carácter de urgência, quase como de vida ou de morte, e no meio vinha ainda um outro de um leitor regular que me explicava muito resumidamente o que se tinha passado, e dirigiu-me ao "link" da página que vêem ali em cima. Fiquei boquiaberto, pois era a última coisa que me passava pela cabeça, e porque digo isto com tanta certeza? Porque Nuno Markl fez da parte do meu texto em que me referi a ele uma interpretação extensiva, e como mais tarde me apercebi, igualmente abusiva. 


Em primeiro lugar fiquei surpreendido com esta atenção inesperada, e não pude deixar de ficar a matutar sobre como foi tal figurão encontrar este humilde blog no meio desse imenso reino do falar muito sem pensar, pesquisar, etc. - eu especializei-me em etc. Só pode ter sido de um jeito, e chamem-me de mauzinho se quiserem, mas o Nuno Markl, pesquisador exímio que é, deve ter o hábito de pesquisar o seu próprio nome na internet. Não acho mal, acho óptimo, e eu também não me inibo de pesquisar, e foi assim, pesquisando, que fiquei a saber que o humorista não tinha assim grande interesse noutras tradições, casos das praxes académicas. Entendo tão bem como o facto dele pesquisar o próprio nome, pois entre o seu público estarão certamente muitos "praxistas", alguns dos quais fiquei até a conhecer, se bem que neste caso de forma inesperada e abrupta - especialmente abrupta. A razão porque escolhi as praxes teve a ver com uma tragédia lamentável que ocorreu há algum tempo e que vitimou seis jovens estudantes enquanto cumpriam uma tradição quem sabe até mais antiga do que a da queima do gato de Mourão, mas aqui sai um tareco chamuscado, e não seis cadáveres. Outra vez: entendo perfeitamente, mas lembro-lhe que foi forma tão liminar e categórica com que "deu bem" nos aldeões de Mourão que me fez pesar as tradições. É uma daquelas coisas do etc. de que às vezes me lembro. A relação com a tourada é sem dúvida o busílis da questão, e que naquela imagem em cima explico exactamente a minha intenção; de um lado abordo a questão das praxes e falo do Nuno Markl (e podem lá ver o nome dele escrito e tudo); do outro lado falo da tourada, não falo do Nuno Markl, e em baixo podem ver que me dirijo ao colectivo da indignação verbalmente violenta à queima do gato de Mourão. Pode ser que Nuno Markl não tenha entendido assim, uma vez que não o "desnomeio" durante a mudança de parágrafo, mas também não tive propriamente o benefício da dúvida pois não? É que acontece quando se fazem julgamentos precipitados, e se calhar isto não tem importância mas mandei-lhe a explicação por mensagem privada, mas debalde: fui ignorado. Pode ser que aquela reacção forte do autor de "O homem que mordeu o cão" tenha a ver  com uma pega de caras que terá tido alguns dias antes - além daquele pequeno insulto no final, que já expliquei não era dirigido a ninguém em particular.


Interessante, deveras, e como eu imagino que deve ser dialogar com quem lida habitualmente com animais bravos, irracionais e impulsivos, com um raciocínio de uma criança de seis anos, idade do filho de Nuno Markl. Espero que nessa função de educador (e eu também tenho um filho de 15 anos), Markl se lembre de ensinar ao júnior a importância de ler os textos do princípio ao fim, e já agora transmita a mesma ideia aos seus seguidores, centenas e centenas deles, e cuja esmagadora maioria não se inibiu de dar a sua opinião sobre o meu artigo, ora uns deles sem ter lido uma única palavra, ora outros vendo só os bonecos, e apesar de muito poucos, foi interessante como os que leram o texto todo até gostaram, e entenderam o meu ponto de vista. Quanto aos restantes, tiveram outras prioridades, como imaginar os mais coloridos impropérios inspirados na minha pessoa. Pena foi que Markl não se tenha detido para lhes atribuir a pontuação - e via-se que eles se esforçavam para agradar ao júri -  e arrumado o assunto do gato chamuscado, esse acto de crueldade hedionda e sem nome, partiu para mais uma batalha, mais uma conquista, mais uma...sandes mista (não sabia como acabar esta frase, então decidi rimar). Contudo fiquei eu a atendê-los, uma vez que os comentários eram directamente dirigidos à minha pessoa, e apesar de eu nunca ter mordido um cão ou queimado um gato (associação desonesta que foi protelada devido à minha "opinião dissidente"), tratei dos casos mais urgentes. Alguns foram até bastante dialogantes e cordatos, e os restantes fugiram. Não faz mal, pois ficou o tal "link" da caixa de comentários, que tive curiosidade em espreitar, e não é que deparei com uma forma de protesto em tudo diferente daquela a que os habitantes de Mourão tiveram direito? Talvez esses mais inteligentes que os tipos da tourada, que não iriam entender vocabulário tão articulado como "más pessoas", ou que entendessem tudo ao contrário quando lhes dissessem que "não eram seres humanos decentes", ou quem sabe se as bandarilhas no lombo da fera assustam menos ou causem menos terror que a um felino saltar de uma "altura gigantesca" - no entanto permitam-me discordar desta frase imbecil. Qual? Todas, ora essa.


Se calhar Markl tinha pressa, e faltou-lhe tempo para explicar tudo muito devagarinho aos fulanos da tauromaquia, que queriam era todos um ferro espetado pelo cu acima. Desculpem mas entusiasmei-me, e inspirado na leitura dos comentários da maioria dos fãs de Markl, que não sei se pesquisam, etc. mas com certeza não pensam, saiu-me este petit gaffete. Quem não tem mesmo pressa nenhuma é a justiça, que se quer ponderada, morosa, e angustiante para quem está do lado de lá, dentro do pote de barro e preparado para pagar pelo crime de maus tratos a animais, que a partir de 1 de Outubro de 2014 lhe foi dado o texto que vemos ali em cima, no artº 387 do Código Penal. Parece pesado, mas não é, pois mesmo com agravantes, 240 dias não são nada comparados com aquilo que a juventude civilizada imaginou como castigo para os responsáveis daquele acto cobarde e sádico a que foi submetido o pobre gato, quem sabe ainda com o pêlo eriçado do susto que apanhou. E quem foram, de entre os 104 habitantes de Mourão, quem sabe agora um pouco menos (as minhas desculpas se me enganei, caso contrário sentidos pêsames) os autores daquela maldade? A GNR local, que nem imaginava que tal acto de barbárie tivesse ali ocorrido (deitam-se cedo, os rapazes) concluiu a investigação, e de entre a centena de habitantes da aldeia conseguiu apurar apenas um (1) responsável - os outros que vemos no vídeo mas não conseguimos identificar são de fora. E quem é que afinal vai estrear a lei e servir como exemplo do que não se deve fazer?


Nunca as minhas palavras foram tão doutas como aquelas com que acabei o parágrafo anterior. Conheçam Rosa dos Santos e o seu gato Farrusco, dois personagens à margem de tudo aquilo que escrevi ali em cima. Rosa e Farrusco são, respectivamente, o carrasco e a vítima do crime horrível que descrevi, e que se preparam para servir de exemplo para que amanhã não se voltem a cometer outros idênticos. Rosa é a dona de Farrusco, a única pessoa identificada na queima do gato de Mourão, que resultou em 17 (dezassete) queixas crime apresentadas por indivíduos e associações, e incorre numa pena que pode muito bem ser de prisão - não se afigura nada famosa, a sua situação. Podia ser pior, pois imaginem que a justiça popular lhe deitava as mãos em cima, e....ou não? E Farrusco é o gato de Mourão, como podem ver ali na imagem, assustado, arisco, traumatizado, próprio de quem foi queimado vivo e dali saindo vivo, tem esse azar danado que o leva a ser sempre sacrificado. E com ele desta vez vai a única pessoa que alguma vez quis saber dele, realmente. Como? Ah sim, sim, inocente só até ao momento em que juiz disser "culpada", pois claro que é culpada, esta "má pessoa", a lei é a lei. Abra-se o champanhe e faz-se o brinde à justiça, e aos justiceiros que tornaram possível realizá-la. Já agora, uma vez que não foram a Mourão antes, vejam lá se agora vão, que o bichano fica lá sozinho e precisa de comer. Aí sim, o Farrusco agradece. 

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