domingo, 1 de novembro de 2015

Enchidos de orgulho (enfardar é preciso)


Nós, os portugueses, conseguimos ser um povo muito, mas mesmo muito burro. Sim, nós portugueses, onde eu próprio me incluo, e no caso do leitor ser também português, é burro também. Deixe lá, que eu também sou. É que ainda por cima uma das coisas que me leva a dizer que "os portugueses são burros" é o facto de muitos portugueses fazerem esta afirmação como se eles próprios se tivessem demitido da Portugalidade. E digo "afirmação" e não "constatação", pois nesse caso fica reiterado que os portugueses são burros - demorou assim tanto tempo a "constatar"? Quer eu próprio, quer o leitor ou outro português qualquer podem-se achar os maiores, o ovo mais fresco da caixa, o pintelho mais viçoso da púbis, e não é certamente por culpa nossa que os portugueses são burros: este "os portugueses" implica os dez milhões deles menos um: nós próprios. Mas somos uma equipa, parceiro, por isso até pode meter três ou quatro golos por jogo, que se lá atrás deixarem entrar os mesmos mais um, é tão derrotado como os coxos que metem a bola na baliza errada. Claro que temos virtudes e defeitos, o contrário não seria normal, mas mesmo aí temos a tendência para o dislate: somos capazes de arrasar um dos nossos (com os políticos à cabeça), mas não admitimos que venha um estrangeiro fazer a mesma coisa (halo, Angela Merkel), e fora do nosso país "somos os maiores", e é tudo virtudes. Nem se venham preocupar com a nossa saúde, obrigado, que temos "a melhor gastronomia do mundo", e de tudo o que temos e causa inveja à "estranja"...


...estão os enchidos. Hmmm...enchidos...salpicão, chouriço, paio, alheira, etc. etc. - a forma mais deliciosa de comer carne de animais que não fosse pela graça do fumeiro, já se tinham decomposto e transformado em matéria orgânica. Sim, é assim mesmo, caso não tenham ainda percebido os enchidos são carne que estaria podre, não fosse pelo processo em que é transformada, com o auxílio de conservantes, alguns deles químicos, e no fundo o melhor mesmo é não saber como se processam estes alimentos que fazem parte do imaginário dos portugueses, variando mesmo na forma, ingredientes e método de preparação, conforme a região do país. Os torresmos, por exemplo, são os restos que os tipos das salsicheiras apanham, e que não entrou nas salsichas (mentira, acho...), e o consumo de alimentos onde entra mais que uma víscera de mais que um animal, não deve ser nada de recomendável numa dieta que se quer saudável. Ah sim é verdade: a esmagadora maioria dos portugueses julgam que "dieta" quer dizer "não comer nada", ou "comer para emagrecer". Daí que os pobres nutricionistas e outros profissionais de saúde que lidam com pacientes obesos precisam de se explicar duas vezes:

- Ora bem, um metro e sessenta...125 quilos...qual é a sua dieta, afinal?

- Ó doutor, eu bem queria fazer dieta, mas não consigo...e... (começa a choramingar, o bucha).

- Epá "dieta" é aquilo que você come com mais frequência, homem. No seu caso estamos a falar do quê? Um boi e seis frangos por dia?

No fundo os portugueses não gostam que lhes digam o que fazer, quanto mais o que comer. Ao alertar um alarve para as quantidades industriais de sal, açúcar e polinsaturados que ingerem com frequência diária, o mais provável é que respondam com "mete-te na tua vida", ou numa versão mais dramática para nos fazer sentir culpados, "eu mato-me a trabalhar, tenho o direito de comer o que eu quiser". Isto só até à primeira coronária, porque depois disso (se sobreviver) torna-se mais manso que um gatinho, a comer a sopinha de legumes com um ar miserável, aguardando resto da refeição sem sal nem gorduras, que lhe sabe tão bem como mastigar o ar. Curiosamente os diabéticos até reagem mais ou menos à sua fatalidade, provavelmente consolados por terem aproveitado bem o deboche gastronómico que foi a sua vida até o ácido úrico se resolver acumular. Devem pensar que "do mal o menos", e de facto podia ser bem pior. Posto isto, esta semana tivemos um grande alarido, e tudo por culpa disto:


Pimba! E isto chegou para deixar um país inteiro em pânico, e abrir um debate nacional sobre alimentos que na sua maioria se apresentam numa forma fálica. É assim: não é mentira que o consumo frequente de enchidos aumenta as possibilidades de se contrair carcinomas do tracto gastrintestinal, mas não é nenhuma novidade: JÁ SE SABIA. A notícia remete-nos para um estudo publicado num jornal de Oncologia, o "Lancet", que avalia os riscos do consumo de "carne vermelha e carne processada" e a sua possível conotação com este tipo de carcinoma, com maior incidência para o cancro do cólon intestinal. No estudo participaram 22 cientistas de 10 países diferentes, que não só não descobriram nada que já não se soubesse, como nunca afirmaram nada do género "quem comer enchidos vai contrair cancro". Entre as muitas conclusões a que se chegou neste estudo, uma delas foi esta: "o consumo diário de 100 gramas de carne vermelha aumenta o risco de cancro em 17%". Assim, tal e qual, e não: "Comer um prego no pão de manhã provoca cancro de tarde". O mesmo para os "alimentos processados": 18% de aumento do risco por cada 50 gramas. E atenção que o objecto da experiência não foi a alheira de Mirandela nem o paio "York" - por "alimentos processados" entende-se uma vasta gama de produtos, desde a "luncheon meat" até as simples salsichas de lata, passando pelas latas de feijoada da Nobre, e até alguns alimentos congelados pré-preparados. Agora, "como é que eu sabia"? Totós. Sois mesmo totós.


Isto são sardinhas "em salmoura", ou seja, "salmouradas". A salmoura é um método rudimentar de preservar os alimentos, não tanto para manter a sua frescura, mas mais para evitar a sua deterioração. Actualmente podemos encontrar a água da salmoura nos frascos de alguns produtos hortícolas, nomeadamente as azeitonas. Agora pode ser que muita malta vá ficar surpreendida com isto que vou dizer agora: Portugal já foi mais pobre e atrasado do que é hoje - e era menos refilão, também. Imaginem só. Espero não vos ter causado um enfarte ou outra coisa má, pois não sei se conseguem aguentar com duas destas arrebatadoras novidades: que os enchidos "fazem mal à saúde", e que Portugal foi mais pobre. E como tal, se recuarmos 50 ou 60 anos - no tempo em que "Portugal era bom, tinha ouro e uma cerveja custava 3 tostões" - não eram todos os agregados familiares que tinham frigorífico em casa. Nem a maioria. Provavelmente nem um terço, ou pode-se mesmo dizer que isso era um luxo reservado às elites, que também eram dos poucos que tinham televisor. Não viam eram nada nele, pois não existia ainda RTP, e isto responde à hipotética pergunta "E como é que as pessoas gelavam as jolas antes dos jogos da selecção?". Nesse tempo as pessoas iam inevitavelmente aos mercados municipais abastecerem-se de alimentos, e como, repito, eram pobres, não eram muitos os que se davam ao luxo de poder comprar víveres diariamente, pautando a escolha pela frescura dos alimentos. Daí que se oiça tantas vezes dizer que o bacalhau "era a comida dos pobres", pois era um peixe submetido a este tipo de conservação, e como ele eram também certos tipos de carne, e no fundo o Cozido à Portuguesa não passa de uma miscelânea de carne cuja frescura data a tempos imemoriais.


Com o evento da refrigeração para todos (e nem foi preciso o major Valentim Loureiro oferecer um frigorífico a cada lar), passou a ser possível conservar os alimentos durante mais tempo, e os produtos frescos ficaram mais acessíveis com a chegada dos super e dos hipermercados. Sabiam que até 1986 o Jumbo era o maior espaço comercial em Portugal, e que quando o primeiro Continente abriu na Amadora isso foi um acontecimento deixou o país inteiro à beira da apoplexia da descrença? Ah pois, e com essa evolução na conservação dos alimentos, diminuiu a incidência de cancro do esófago e do estômago, sempre elevados nos países onde a alimentação é fraca em fruta, legumes, e fibras em geral, e consome-me mais sal do que o recomendado pela tal OMS - que é uma pitadinha que mal dá para um pires de amendoins, diga-se de passagem. Ainda hoje é fácil estabelecer essa ligação entre os hábitos alimentares, e quanto menos acesso a produtos frescos, maior é o risco. Outra vez: o que o estudo vem demonstrar é que existe um maior risco consumindo mais alimentos conservados do que uma quantidade, e acima da qual esse risco aumenta na ordem de menos 20%. O que é assim tão complicado de entender?


Tudo, aparentemente, porque o tuga não lê, não vai saber, não interpreta, e basta um pintarola qualquer abrir o Telejornal a dizer com um ar alarmado e um sorrisinho sacana que "os enchidos provocam cancro", para deitar a feijoada do jantar toda pela sanita abaixo, e meter os dedos nas goelas dos miúdos, que já iam a metade da refeição. Banem-se assim de uma assentada os enchidos, como se subitamente o Dick Dastardly (em cima na imagem) tivesse envenenado as charcutarias, fumeiros e salgueiros do país inteiro, e tornado cancerígenas produtos que antes eram de uma salubridade indiscutível, servidos como aperitivo nas Termas do Luso, e ralados num passador para dar aos bebés no biberão. Além das opiniões pessoais que se partilhavam nas redes sociais, coisas do calibre de "ainda ontem comi um pão com chouriço e ainda estou vivo", vi uma reportagem num restaurante do Porto, cuja especialidade são as famosas Francesinhas, e onde a jornalista perguntava aos clientes se "continuavam mesmo assim a comer enchidos". "Mesmo assim" porquê? Aconteceu alguma coisa entre a semana passada e esta que tornaram os enchidos nalguma arma química? A proprietária do tal estabelecimento estava pior que estragada, obviamente, e refilou, da maneira que sabe, analfabeta, boçal e rústica: "entone eu tenhaki uns anchidos tanbons, e untem num fazia mali e agora dizem que já faz". Atenção que este "dizem" refere-se à OMS, mas do que adianta explicar-lhe isso, se ela depois depois vai pensar que afinal é a Ofélia Maria Saraiva (OMS, capisce?), a dona da tasca da rua de trás, que anda por aí a espalhar que as francesinhas daquela tripeira "eston cun cancro, carago!". Também não valia a pena explicar-lhe que os enchidos que ela produz e vende nunca fizeram exactamente "bem" à saúde, mas também não vão causar morte fulminante aos fregueses, logo à primeira dentada. Até seria muita soberba pensar que conseguíamos sozinhos e em poucos minutos compensar a escolaridade da senhora, que deixou os bancos da escola para ir encher chouriços - literalmente.



Agora imaginem isto: e mesmo que fossem "um perigo para a saúde pública", e que mal se desse uma dentada numa fatia de bacon, surgisse um tumor do tamanho de uma bola de ténis no meio do pescoço? Evitar comer agora neutralizava tudo os que se comeu antes, foi? Esta reacção foi em tudo semelhante a outra aquando há uns anos se detectou nos frangos de aviário um antibiótico do grupo dos nitrofuranos, potencialmente cancerígenos. O Tuga, que mamava dois frangos na brasa por semana, pulou logo da cadeira e exclamou "F...-se! Nunca mais como frango, ó c...", como se os aviários tivessem bolado um plano diabólico para o destruir, a ele somente, e investido tempo e dinheiro incalculáveis nessa conspiração. Ora essa, isto é só durante a notícia, e depois de já ninguém se lembrar mais, toca a ferrar o dente no "Nitrofurango" (ah ah). É quase mecânico - um dia está na cantina a fazer uma bucha com um colega e este pergunta-lhe: "Vou buscar uma sandes de presunto. Queres uma também?", e o outro responde "Tás maluco ou quê? Não sabes que essa m... dá cancro?". E de seguida acende um cigarro, já aliviado do perigo que passou. O cigarro não faz mal, porque é consumido conscientemente, da mesma forma que dias depois está o tipo a virar um prato de linguiça assada, e o mesmo amigo fica intrigado, mas antes que possa inquiri-lo seja do que for, o outro diz-lhe logo "mete-te na tua vida que eu sei o que estou a fazer". Quem sabe se é neste "ioga tuga" que reside a solução que a humanidade tanto procura, a cura do cancro? É só ficar "à coca, tás a ver?", e quando o cancro chega "shut! elá, qué isto...xô daqui pra fora, ó cancradas". Ao ludibriá-lo com frangos medicamentados e enchidos cancerígenos é que não, assim é à traição. No fundo nada mudou: Viriato, o proto-tuga, fora traído pelos próprios camaradas lusitanos - aqui os enchidos - , que se deixaram comprar pelos romanos - o cancro. Tudo se explica, mesmo que a explicação seja um disparate sem pés nem cabeça, como este que escrevi mesmo agora.


Eu sei que é difícil cada vez que se fala nisto repetir a lenga-lenga do "aumento o risco de contrair doenças do foro oncológico", e opta-se por resumir tudo simplesmente com "dá cancro". Mas cada vez que oiço isto não consigo evitar imaginar alguém a chegar ao pé de outra pessoa e despejar-lhe um balde de "cancro" pela cabeça abaixo, como se fosse uma daquelas coisas que "lavando com lixívia sai".  Mas nada disso; a ignorância do "tuga" não chega a esse ponto. Ele sabe perfeitamente que não há nada que ele possa fazer agora que daqui a cinco minutos lhe "dê cancro", qual doença contagiosa que se apanha levando com um espirro em cima, ou sentando-se na mesma sanita - já quanto à evidência de que não há nada que ele possa fazer ou evitar que o torne invulnerável ao carcinoma, já não tenho tanta certeza. Mas aqui é muito fácil evitar figuras tristes: basta não ser um alarve. Também um dia destes, e a propósito deste tema, foi à TV um nutricionista lembrar aquilo que aprendemos na escola (ou devíamos ter aprendido): a carne vermelha, que também "dá cancro", é uma fonte de proteínas e vitamina B12, que são necessárias e importantes, mas lá está, convém ter moderação e não abusar. Não é nenhuma novidade, e nem entendo porque é que o jornalista ficou ali estarrecido a escutar o homem com muita atenção, e até parecia que em vez de um médico estava ali um druida, com uma poção para curar a peste. É assim, comei, e não abusai, e sereis saudáveis. Já agora ajuda muito se GASTARMOS essa energia das proteínas, em vez de comer um cabrito inteiro empurrado com um garrafão de tintol, e a seguir ir dormir a sesta, deixando a pança em alvoroço. Nós portugueses às vezes conseguimos ser tão burros...

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