sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A extrema demissão


Passa hoje uma semana desde a morte de Lai Man Wa, directora dos Serviços de Alfândega, um dos dez altos cargos do Executivo da RAEM, depois do Chefe de Executivo. E foi o próprio CE que indigitou em finais de 2014 a graduada das Forças de Segurança, de 56 anos, que passou toda uma carreira de mais de três décadas como oficial aduaneira, tendo sido a única escolha do IV Executivo a ocupar a posição hierarquicamente superior à que já ocupava, a de vice-directora. Foi na última sexta-feira à tarde que o corpo da directora dos SA foi encontrado sem vida por um desconhecido num local perto da sua residência na Taipa, com indícios de que teria cometido suicídio. Confesso que fui apanhado de surpresa, não porque "não esperava", mas mais porque não conhecia Lai Man Wa, que será, ou foi até aqui, a figura mais discreta do Executivo. Não a reconheceria se a visse, e penso que a única vez que fiz referência ao seu nome neste espaço foi na altura em que tomou posse - nada antes, nem depois. Até agora, e contra gosto.

Não queria abordar este assunto por um simples motivo: é feio, inoportuno e inumano. Lai Man Wa era uma pessoa, um ser humano de carne e osso como nós, e não uma máquina de assinar despachos, uma "vending machine" do Executivo. Tem família, tem filhos, e nem quero imaginar a angústia que tem sido esta semana que hoje finda para os seus entes queridos, a quem devia ser deixado cumprir o luto com o mínimo de dignidade, mas que em vez disso vêem a sua aflição transformada num autêntico circo mediático. O mínimo que se pedia era um pouco de decoro, de respeito pela dor alheia, e pudor nos comentários que se pudessem fazer com o pretexto de se tratar de uma figura pública, neste caso um alto dirigente do Governo da região. Entretanto, e volvida uma semana, deu-se o insólito: quem mais se deveria pautar pela discrição, e tacitamente apelar a que todos fizessem o mesmo, acabou por criar um nuvem de suspeição em redor da tragédia. Mais um autêntico "tiro no pé", mas com contornos muito misteriosos.

Poucas horas depois de ter sido confirmado o óbito da sra. directora, o Executivo veio anunciar a triste notícia aos orgãos de comunicação, como lhe competia, e nem o tinham ainda feito e já o CCAC emitia uma nota, não de pesar, mas antes uma espécie de "atestado de isenção", assegurando que a malograda directora não se encontrava a ser investigada pelo comissariado. O que parecia inicialmente ser mais um exemplo da enorme falta de tacto para lidar com este tipo de situações, e a que já estamos mais ou menos habituados, rapidamente apareceu  um "caso" que tem vindo a crescer dia após dia, e que podia muito bem ter sido evitado por respeito à memória da sra. directora, que por mais que se especule, ou se detectem contradições que levantem suspeitas, ou procurem pistas que levem a versões alternativas dos factos, já não está mais entre nós. Lamenta-se a perda, e dos restos só aos abutres interessa. Eu pessoalmente, e a julgar pelo quadro todo sem recurso à minúcia da peritagem, acredito que terá sido mesmo suicídio, e as razões são sempre pessoais e não nos dizem respeito - ou não nos deviam dizer respeito, não fosse pela persistência das autoridades em afastar outro cenário que não este, sem que ninguém tivesse levantado qualquer questão.

Tem sido com uma frequência quase diária, e forma errática e até semi-catatónica  que as Forças de Segurança têm vindo a confirmar que se tratou realmente de suicídio, afastando a possibilidade de homicídio, ou da interferência de outro agente na morte da directora. Inicialmente a intenção era "evitar que se especule ou circulem rumores, tratando-se de uma figura do Governo", o que se aceita, mesmo que o "timing" não tenha sido um aspecto em consideração, e muito menos a entrega; notava-se uma maior preocupação em afastar de imediato outras teses para lá do suicídio do que propriamente anunciar a triste ocorrência e manifestar o pesar pela perda. Mesmo neste último particular, parecia existir um certo exagero, deixando saber detalhes pessoais e outros pormenores que normalmente não são facultados ao público em geral - há duas semanas um funcionário  do CCAC cometeu também suicídio, e deste nada se sabe, podendo-se mesmo falar de dois extremos em matéria de publicidade dos factos. E depois disto vem-se reiterar o que inicialmente se afirmou como uma certeza, e sempre deixando a promessa de "continuar a investigar". Mas..."investigar"? Num homicídio existe uma vítima e um autor, o "homicida". No suicídio existe uma única vítima, que é também o próprio autor - investigar o quê, exactamente?

Se a ideia era que não se especulasse, o plano falhou miseravelmente, mas apenas por culpa própria. Desde há dois ou três dias que toda a gente fala, tem uma opinião, e até na TV e rádio em língua chinesa o tema é debatido abertamente, e urdidas as teorias da conspiração mais diversas. Ontem foi a vez da Associação Novo Macau pronunciar-se sobre o caso,  e até acho que desta vez foram compelidos pela forma como o próprio Executivo adensava a desconfiança. Sem ter muito para acrescentar (e aqui o Executivo prejudicou-se em termos de imagem mais do que o NMD poderia ter feito), Scott Cheang vem pedir "em nome da transparência" que se apresentem "provas". Provas? Do suicídio já as há, e como se vai provar o que NÃO aconteceu?  Os rapazes da pró democracia se calhar não queriam mexer neste vespeiro, mas era tão evidente a desorientação do outro lado da barricada, que era quase como se estivessem a ser empurrados para o campo: o Executivo fecha-se em copas, não põe ordem na barafunda, e insiste na mesma táctica, apesar de sofrer golo atrás de golo, e já nem sabe a quantas anda, tamanha é a "goleada". Mas fazer o quê, quando o mal já foi feito, e o silêncio já dizia mais que mil explicações? Afinal o que se passa? Isto é como se alguém me dissesse "se te roubarem a carteira, não fui eu", e no dia seguinte a minha carteira é roubada - e olhem que isto nunca aconteceu. E estou a falar a sério, e se o tom denota alguma ligeireza, só me posso justificar com a atitude quase surrealista das FSM, que até parecem estar a querer mandar algum recado, ou uma mensagem em código. É muito estranho, deveras.

Tal como eles, eu também reafirmo, mas só mais esta vez: acredito na tese do suicídio, e censuro o deboche que tem sido feito do caso, e que de certeza deixa a família da malograda directora ainda mais consternada. Nada do que se faça poderá mudar a sorte triste fim da sra. directora dos Serviços de Alfândega, que foi ontem a enterrar, mas o que parece estar aqui em causa é a "raiz" deste triste episódio, ou seja, o que motivou o suicídio - e aqui é que é capaz de se perceber a razão de tanta desorientação por parte de quem normalmente trata estes casos com uma frieza tal, que chega a reduzir a sua importância a um mero "coisas que acontecem". Porque aquilo que motiva alguém a um acto tão extremo, sem segunda oportunidade para resolver o que a atormenta pode ser muita coisa, mas sempre com uma matriz comum: o desespero, a crença de que não existe uma solução, e que se algo for mudar, será sempre para pior. O que poderá ser assim tão mau, ou estar assim tão mal? Afirmando como verdade que tanto a sra. directora como o funcionário do CCAC de que nada se sabe cometeram suicídio por razões que só lhes dizem respeito, que "stress" é este que subitamente afecta indivíduos considerados excepcionais, e dos quais nos transmitem uma imagem de "rigor,  isenção e lealdade no cumprimento do dever", no fundo as elites da governação, que são ao mesmo tempo o seu espelho? Não deram um único sinal de fadiga até ao dia em que resolveram desta forma tão extrema demitirem-se das suas obrigações? E se é assim com eles, que usufruem de regalias adquiridas por anos de empenho e devoção, o que dizer de nós, mais propensos ao erro, mais falíveis, mais humanos?

No "post" seguinte vou tratar separadamente de uma das teorias que tem sido veiculada, mas sem me referir directamente à sra. directora: a "pressão" a que alegadamente estão sujeitos os quadros da administração. É um assunto pertinente, e de que se têm ouvido opiniões "de fora", que não estando de um modo geral erradas ou denotando falta de conhecimento de causa, há um ou dois aspectos que convinha esmiuçar, e para o efeito não vou recorrer a meias-palavras, ou fazer qualquer espécie de rodeios. Quanto a mais esta "gaffe", o que podemos dizer mais do que vem a dizer o último inquérito aos residentes de Macau indicando a crescente perda de confiança no Executivo, e também no Governo Central. Sim, de um lado temos aqueles que falam demais e "espalham-se ao comprido", e do outro não sabemos muito bem o que se pensa de tudo isto, mas o silêncio a que se remetem é confrangedor. Ou ignoram, ou preferem não saber, o que já não abona muito a seu favor, ou "outros", o que não pode ser coisa boa, certamente. E pelo meio, há quem prefira não ficar vivo para assistir.

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