segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Frágil: democracia



De regresso a pista depois de dois dias nas "boxes", vou recuperando algum do terreno perdido e colocando a leitura em dia. No Clarim da última sexta-feira dou conta de um artigo sobre o movimento "Occupy Central" que por incrível que pareça se mantém actual, tal é o bolo rei de informação e contra-informação em que o fenómeno se transformou. Nesse artigo dou conta da opinião de dois advogados portugueses, um deles nem mais que o presidente da Associação que representa a classe, dr. Neto Valente, secundado pelo igualmente erudito dr. Frederico Rato, que me tem surpreendido pela positiva na forma como "ataca" de forma mais directa certos temas que outros vão contornando, sempre com o tal bloqueio invisível que nos vai sendo injectado aos poucos. E de facto ha problemáticas que tem uma leitura clara como a água e que ninguém quer contornar por receio de dar a entender que tudo acima do banal e do fútil pode ser "perigoso", então o melhor é andar a discutir as várias perspectivas por onde nos é dado a observar o sexo dos anjos. Os dois causídicos falam da possibilidade de algo semelhante ao movimento organizado pelo sector democrático em Hong Kong acontecer deste lado, e enquanto o primeiro é peremptório em afirmar que tal nunca seria possível, ou pelo menos numa dimensão idêntica à da RAEHK, o segundo considera "improvável", mas que "não seria nenhuma tragédia". Gostava de deixar umas notas sobre alguns pontos que considero que não foram esmiuçados em relação a este fastidioso assunto, se me permitem.

Neto Valente pega na ideia de que não existem almoços grátis, e de facto é lamentável quando se observa a forma descontraída e quase indiferente como pessoas aparentemente sem uma agenda ou interesses directos no que poderá sair deste impasse a aderir com uma vontade tremenda, de como quem se prepara para mudar o mundo, com o futuro dos seus filhos em mente, enfim, já pensava que era cada vez mais difícil encontrar quem tivesse acreditado em tempos que isto nos podia ser entregue de mão beijada por alguém, mas agora vejo novos crentes a aparecer com uma facilidade que nem os deixa ver as falhas no guião - é como pescar peixe num barril. Quando o presidente da AAM fala de "gente por detrás disto", penso que muitos de nós sabemos de quem se trata, mas especular seria improcedente. Não adianta avançar com uma teoria que ligue o movimento ao grande capital ou a interesses de consórcios multinacionais, pois levamos com a etiqueta de "materialistas", ou alertar para a dimensão do que está realmente por detrás deste Woodstock sem música e pior que isso, sem letra, e das eventuais consequências, que nos vem apelidar de cobardes ou de conformistas - nomes normalmente menos dignos que "seguidistas",maso que não parece ser aqui o caso. O pior é que esta nem se afigura como uma daquelas situações em que eu não me importava de estar redondamente errado; é que da tal "abertura democrática" que os manifestantes pedem do outro lado, eles próprios tem mostrado saber muito pouco. Por não estar a favor do movimento com base na sua simples falta de direcção, para eles estarei necessariamente "contra". Espero que não me acusem de cooperar com o "inimigo", pois duvido que venham a estar em posição de me pedir explicações.

O dr. Neto Valente chama ainda a atenção para a falência das revoluções, ou "movimentos de massas", quanto a um meio de atingir o bem comum, e dá como exemplo a Revolução Cultural; um áptimo exemplo, diga-se de passagem, uma vez que das que ainda restam alguns sobreviventes, é a mais radical, e do lado dos que sofreram com ela ainda existe muito ressentimento, e dos que tomaram parte activa existirá concerteza arrependimento - a quantidade dependerá da consciência e do carácter de cada um. Para mim, e isto é só a minha opinião, a única revolução em toda a História assente num princípio válido que reúna consenso geral terá sido a Revolução Francesa - por muito mal que o mundo esteja, estaria sempre pior sem os valores que dela emergiram. E de facto a palavra "revolução" deixa-nos em sentido, pois caso o seu uso não seja no sentido mais lato, o que se aplica à moda, às artes ou aos costumes, implica sempre uma carga politica, um extremar de posições, um confronto. As revoluções servem um fim e acabam normalmente com derramamento de sangue, e há casos em que as contra-revoluções, ou contra-golpes saem vitoriosos. Posto nestes moldes, parece-me de uma grande irresponsabilidade - senão mesmo negligência criminosa - mudar o nome desta acção de "movimento" para "revolução", e aqui pouco importa que seja dos guarda-chuvas, do feijão fradinho ou dos ursinhos de peluche - é serio demais para se brincar. Sabem o que pensei da primeira vez que ouvi falar da Revolução Cultural, quando era um petiz imberbe (não digo "e inocente" porque isso só existe como figura jurídica) pensava que se tratava de uma coisa boa: "revolução cultural...todos a escrever, pintar, fazer cinema...que bom!". Entretanto fui procurar conhecer mais sobre as razões que levaram a esta mudança de nome que não é tão insignificante quanto isso, e fiquei a saber que a versão chinesa da palavra não tem o mesmo impacto que em portugues ou na maior parte das linguas ocidentais, e chega mesmo a ser confundida com "mudança" ou apenas "vida nova" (革命, ou no caso da tal "revolução cultural", 文化大革命, ou "nova grande ordem da aprendizagem). Parece que o mesmo se terá passado com "desobediência civil" (公民抗命: "contra a ordem civil") que vejo sair da boca daqueles jovens como se estivessem a falar de badminton ou outra coisa qualquer para fazer num Sábado à tarde. Só me preocupa é que alguns dos jovens que dizem estar dispostos a "dar a vida" por isto que não sabe bem onde nos vai levar não tenham uma interpretação alternativa da sua mensagem.

O dr. Frederico Rato toca na ferida, dizendo que em Macau uma iniciativa semelhante nunca partiria de dentro, pois apesar de reconhecer que existem motivações políticas para descontentamento e manifestações, mas, e atenção a este importantíssimo detalhe, a população não está "tão avançada do ponto de vista de educação democrática e no exercício das liberdades fundamentais". Ora aqui temos o busílis, a espada de dois gumes, o pau de dois bicos: a mesma estratégia que serviu para governar sem grande oposição vira-se agora contra quem inicialmente teve essa ideia. Manter a população na ignorância e usar o medo e a intimidação para exercer a autoridade depende da forma mais ou menos permissiva com que se aceita. Convencer o povo de que a política "é suja" e que deixar essa função a seu cargo é aliviá-lo de um fardo pesado resulta apenas até começarem a surgir problemas e forem exigidas respostas. Aí em vez do diálogo opta-se pela estratégia do medo, mas isto até aparecer alguém mais dotado de retórica - afinal para quem não entende nada de política, a vontade-própria é uma esponja que absorve tudo, e que depois de espremida deixa lá qualquer coisa, que pode serbom ou nem por isso. O medo nunca é a forma mais eficaz de manter o poder; é o mesmo que pensar que um casamento pode durar para sempre sustentado em algo tão volátil como o amor. É preciso compromisso, cooperação, em suma é como termos um amigo rico que nos aparece por casa de vez em quando e também de vez em quando nos convida para a sua casa - tem sido esse o erro do regime: mostra que tem coisas boas, que vivem bem, mas vem ao nosso encontro "tratar da nossa vida" mas não nos deixa participar um pouquinho que seja da sua.

É que isto da "educação democrática" pode parecer uma coisa complicada, que requer um curso superior qualquer, mas basta nascer e crescer onde ela esteja implantada, para o bem e para o mal, e adquir-la por inerência. Não é um processo perfeito, nem com eficácia garantida, e é claro que sofre da sua boa dose de vícios. Aqui por exemplo, em vez de tentarmos passar um pouco dos nossos conhecimentos sobre esse assunto, temos a tendência para trair esses valores, e por vezes julgando que o fazemos em seu nome, ou em nome de um "happy ending". O que transparece do comportamento destes democratas de primeira viagem que são a mole que compõe o "Occupy Central" é que enjoam com a ondulação alheia. Para chegar ao Everest da democracia - se é que alguém lá chegou - é preciso um nível de tolerância tão extremo que nos leva a aceitar a opinião de quem usa a liberdade de expressão para advogar a censura, ou peça eleições para votar o fim da democracia, e com isso o fim de eleições livres. A democracia é isso mesmo: autofágica, auto-regeneradora, que renasce das cinzas como uma Fénix e que se evapora sem saber para onde foi, ou quando volta. Para mantê-la em bom estado é preciso mais do que confrontar as autoridades. Sabem o que mais? As autoridades são uma parte essencial da democracia. Pensem lá nisso, pá.

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