sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Deixa a corneta, pateta!



Sexta-feira, fim-de-semana prolongado pela frente, tempo ameno e disposição dentro da média; fosse também dia de pagamento e seria o mais perto do céu que se podia ficar. O horário habitual da entrada é às 10 horas, com excepção do último dia da semana, quando se entra 15 minutos mais tarde, e esse dia foi, portanto, hoje. Quinze minutos a mais, pretexto para que alguns fiquem mais um pouco na cama, enquanto outros aproveitam para tratar de assuntos particulares, uma vez que a maioria dos serviços já se encontrava a funcionar desde as 9, e para mim são mais quinze minutos em casa a actualizar as leituras ou a tratar de outra contabilidade diversa. O problema com esta confortável almofada temporal é que acabamos por procrastinar a saida de casa, e nem por acaso foi exactamente o que me aconteceu. Nada de grave, mais cinco minutos, menos cinco minutos, mas como que em honra do santo padroeiro dos pontuais - seja lá qual for - decidi meter a caixa das mudanças em marcha rápida, esperando assim fazer em 10 minutos o que faço normalmente em 15.

Bem sei que é desagradável meter-me neste guisado quando tinha todo o tempo do mundo para fazer o caminho descontraídamente, podendo até deter-me a contemplar alguma das obras da mãe natureza, como a vinda ao mundo de um novo caracol, ou o desabrochar de algum lilás ou outra porra qualquer que ninguém imagina que possa encontrar na distância entre o Bairro de S. Lourenço e a Rua do Campo, e não estamos propriamente nos Alpes suíços para que possa abrir os braços em sinal de gratidão com o criador, desatando a cantarolar sobre os montes ganharem vida com o som da música. Em primeiro lugar, quais montes? E qualquer ser inanimado ou não ia-se sentir tudo menos vivo depois de ouvir a "música" produzida pelas minhas cordas vocais - chamar-lhes "cordas" é um insulto aos instrumentos de corda; eu chamaria-lhes antes "atacadores de sapato vocais".

Quantificada que está a vontade de sair de casa para ir a luta, mesmo com três dias de folga no horizonte, ou seja, nenhuma, convém aqui lembrar que andar na rua em Macau às dez da manhã deixou de ser o que era desde...nem me lembro? Suponho que desde os tempos da Revolução Cultural, quando as multidões se concentravam num determinado ponto, não para fazer compras, mas antes para condenar os hábitos consumistas como decadentes e contra-revolucionários, e para ilustrar esse ponto partiam uma ou duas montras juntando a isso o respectivo saquezito - coisa sem importância, apenas para demonstrar que com o proletariado ninguém brinca. Ponto assente, em Macau deixou de existir o que nas outras cidades se designa por "hora de ponta", e qualquer hora passou a ser "hora que não tem ponta por onde se pegue". Assim sendo, lá fui eu galgando o cinzento asfalto ao ritmo da marcha olímpica (refiro-me à velocidade, não ao jeito cómico com que os atletas marcham, dando a entender que seguram aflitos uma semana inteira de alimentos não digeridos).

Empurrão aqui, encontrão ali, sempre com atenção redobrada devido a esses anjinhos que andam na rua a mandar mensagens no telemóvel, que pela urgência com que o fazem deve ser algo de importância decisiva para economia de Macau, que Deus os abençoe, e aos que ficam especados a contemplar o infinito (devem ser turistas a querer certificar que o céu em Macau é igual ao dos outros sítios), ia fazendo um tempo catita: mais ou menos dez minutos depois de sair de casa, estava no fim da Avenida da Praia Grande, junto do cruzamento com a Rua do Campo, onde existem duas passagens para peões até à Biblioteca da Associação Comercial de Macau. Na primeira o sinal estava verde; porreiro pá! No segundo estava vermelho, mas com um ou dois minutos até ao quarto de hora depois das dez, olhei para a esquerda, e tudo o que vi foi uma motorizada, e a uma distância considerável. Calculei as probabilidades, e uma corridazinha deixava-me do outro lado em dois ou três segundos, enquanto o veículo necessitaria de estar a circular a pelo menos 200 km/h para entrar em ponto de colisão. Valia a pena arriscar.

Mas vejam lá a minha sorte, que imaginando estar apenas a usar o senso-comum, estava na verdade a cometer um crime gravíssimo, uma infração rodoviária, para mais agravada com um crime contra a honra! Passo a explicar: no momento em que ponho o meu pézinho, devagar devagarinho para chegar ao outro lado da estrada, o zeloso motociclista começa a buzinar feito um maníaco. Não entendi bem porquê, dada a impossibilidade material de poder atingir, ou de sequer a minha pequena batota obrigá-lo a abrandar. Assumindo que se tratava de mais um chico-esperto, fiz-lhe um manguito enquanto chegava ao outro lado do passeio - atitude perfeitamente legítima nestas circunstâncias, e tem o mesmo valor do símbolo da paz para um "hippie": o gajo entende. Mas não é para meu espanto quando o cromo passa por mim e oiço vindo da sua matraca mongolóide a conjugação da terceira pessoa do singular do imperativo do verbo que entre o povo substitui normalmente o acto físico do amor. Sabem como é, aquela palavra que é semelhante a "foram-se". Além do facto de se ter pronunciado (mal e porcamente) na língua de Camões, não o consegui identificar, mas penso que era este indivíduo:



Isso mesmo, o Dick Dastardly! Neste caso mais "Dick" (pénis) que outra coisa. Não entendo onde é que a minha vontade em ser pontual interfere com a cidadania deste indivíduo, os seus sonhos e ambições, ou como pode a minha vontade de manter um registo de pontualidade limpo ser um obstáculo às suas realizações. Talvez tivesse receio que eu me atrevessasse no caminho, batesse em mim e lá iam os melões e os garrafões de tintol pró caralho. Quais melões e garrafões de tintol, perguntam vocês? Ele vinha a trazer isso na mota? Sei lá, não sou rabo, portanto não quis ver o focinho do tipo com a esperança que fosse o meu príncipe encantado. Pelo que me deu a entender à distância que o vi, não trazia melões, vinho, ou qualquer sinistrado a esvair-se em sangue, ou nada que justificasse a sinfonia de buzina. Se calhar tinha comprado a corneta ontem, e queria testá-la. Se me estiver a ler, deixe-me perguntar isto: tinham lá outro som além desse de "pato marreco"?

Agora devem estar alguns leitores mais "jurisprudentes" a pensar: "Ó Leocardo, deixa-te de merdas, ranhoso. Atravessaste no vermelho e ainda fizeste um manguito ao homem, e estás para aí armado em vítima?". Deixem-me dizer em primeiro lugar que não estou armado em nada, e não houve ali nenhuma "vítima", a não ser talvez os tímpanos das pessoas que iam a passar, que ficaram sem entender qual era a aflição do motoqueiro-justiceiro, indignado com a minha infração seguido de atentado à honra - crime com a agravante de outro crime, que o Mascarilha, ou neste caso "Capacetilha" das duas rodas fez questão de não deixar passar em claro. Deve ter tirado a carta recentemente, e se calhar das aulas de código esta é a única lição de que ainda se recorda: vermelho é para parar.

É que se realmente o abelhudo sabe falar português, gostaria de trocar duas palavrinhas com ele. E não me vou armar em marialva e dizer que lhe dava uns cascudos, pois nem o meu indicador em riste lhe furou um dos olhos de cima, nem a sua agressão verbal dirigida a sabe-se-lá quem (vai-te f... seria dirigido à minha pessoa, de outra forma...) me provocou fracturas no cabelo; e isso de andar à bulha é para as crianças. O que eu gostaria de lhe perguntar é que modelo de virtudes ele pensa que é para questionar daquele jeito uma decisão pessoal que mesmo não sendo legal não resultou de qualquer prejuízo para ninguém, e passaria completamente despercebida não fosse pelo seu transtorno pré-menstrual masculino. Aproveitava já agora para lhe mostrar o meu documento de identificação que prova que sou maior e vacinado (o boletim de vacinas é que não trago comigo habitualmente) e explicar-lhe muito devagarinho que apesar de se poder fazer uma analogia entre os faróis dos veículos a motor e os olhos da cara, não é bem a mesma coisa: eu sei o que faço e vejo o que estou a fazer.

Para concluir, gostava de deixar claro que não tenho por hábito atravessar ilegalmente a estrada, mas de cada vez que o faço não fico no meio da mesma a atrapalhar a vida a ninguém. Já o mesmo não se pode dizer dos motociclos estacionados no passeio, que obrigam os peões contornar o espaço que lhes é garantido por direito e é público, sendo por vezes obrigados a circular pela beira da estrada, onde amiúde encontram os camaradas deste nosso amigo que não se inibem de apitar para "penalty" assinalando a infração. Não mantenho sequer um registo de quantas vezes atravessei com o sinal vermelho para peões, enquanto o bípede de biciclo deve já ter estacionado o mesmo ilegalmente dúzias de vezes, consciente da sua falta mas exorcizando a culpa para o Governo, que tem a obrigação de lhe providenciar um espaço para enfiar o utilitário, e já agora limpar-lhe a boquinha por onde debita os foram-se com que desabafa cada vez que se arma em herói. Aqui a diferença é que se pagássemos por cada infração que cometemos os dois, eu continuaria alegremente a calcar o asfalto, e o menino andava de transporte público de sovaco ao léu com o resto do povo. Olé, e tenho dito.

Sem comentários: