sábado, 16 de novembro de 2013

Quem somos, realmente? Parte XXIV: solidão


“Mais vale só que mal acompanhado”, diz-se, e...esperem lá um bocadinho, alto lá. Tenho reparado que para cada um destes artigos dedicados a esta rubrica “Quem somos, realmente?” não raras vezes tenho recorrido à sabedoria popular, que providencia sempre uma frase feita para ilustrar estes aspectos da condição humana. Só que neste caso discordo e ninguém me convence de que isto é uma grande verdade. Só acha que “mais vale só do que mal acompanhado” quem pode escolher a sua companhia. Para quem está esquecido, abandonado, reduzido a conversar com o gato, com o canário ou com as paredes, mais vale estar acompanhado do que estupidamente só.

Na nossa língua portuguesa a distinção entre “só” e “sozinho” é ambígua. Em inglês temos “alone”, que significa estar só, mas não necessariamente infeliz, e “lonely”, que é estar só sem que lhe tivesse dado alguma opção. No fundo é a diferença entre “quero ficar só”, que se diz quando queremos pensar, reflectir, ser deixados apenas na companhia dos nossos pensamentos, e “estou tão só”, que é quando se lamenta o facto de não se ter uma companhia. No primeiro caso não nos apetece aturar ninguém, no segundo não temos ninguém para nos aturar.

Quem mais sente a solidão são os velhos, pessoas que em tempo foram novas, cheias de vida, rodeadas de amigos, de filhos, de irmãos, de primos, enfim, tinham alturas em que gostavam de ficar sozinhas e não lhes era dada essa hipótese. Uma vez sozinhos não por opção, mas por força do destino, ficam famintos de atenção, precisam de alguém com quem desabafar, com quem partilhar um história, uma emoção ou um pensamento. Muitas vezes acabam a falar sozinhos. O mesmo amigo imaginário que por vezes nos acompanha quando somos pequenos e não temos ninguém para brincar volta muito depois, no fim da vida, e de mãos na cintura troça de nós dizendo: “olha quem é ele...há quanto tempo”.

A solidão acompanha-nos desde que nascemos, é um sentimento que vem com o pacote completo. É um acessório que não pedimos, mas é na mesma incluído, como o jogo da solitária quando compramos um computador novo. Os bebés choram quando acordam e não vêem ninguém à sua volta. Não choram porque sentem dor, e mesmo que tenham a fraldita molhada ou esteja na hora da teta, isso não é razão para chorar. Choram porque identificam a solidão, que para eles é algo novo e estranho a que não sabem reagir doutra forma, e querem ali alguém, agora e já, para espantar esse “macaco”.

Recordo-me de um episódio quando tinha os meus sete ou oito anos. A minha avó paterna, que era diabética, tinha uma consulta médica, e levou-me com ela. Era um dia de semana, pela tardinha, e devia estar num qualquer período de férias escolares, e se a memória não me falha era a Páscoa. No consultório estavam só outras “avós” como a minha, e enquanto esperavam para ser atendidas, lamentavam-se de como eram velhas e iam morrer, um tipo de conversa em que eu não estava minimamente interessado. Fui lá para fora apanhar ar enquanto esperava que a avó ouvisse do médico que ainda não era naquele dia ou na semana seguinte que ia bater a bota.

Enquanto esperava que o tempo passasse, ia dando pontapés nas pedras que encontrava na relva junto dos blocos de habitação que ficavam ao lado da clínica. Não me recordo se a consulta demorou uma hora, duas ou dez. Para uma criança de sete ou oito anos esperar cinco minutos por qualquer coisa ao lado de velhos no fim da linha parece uma eternidade. Foi aí que apareceram dois rapazes, moradores daquela zona, que traziam consigo uma bola. Foi com um brilho nos olhos que os vi chegar, e mais satisfeito fiquei quando me convidaram para jogar. Estava ali a resposta para as minhas preces de pequenote mais chateado que uma base para pizzas.

O problema era a diferença de idades. Eu teria oito anos, assumindo que não tinha sete, e eles teriam 10 ou 11. Durante a nossa peladinha falavam um com o outro recorrendo ao uso de obscenidades, próprias de quem havia saído do ensino primário e passado pela prova de fogo que é o preparatório, onde não há uma única professora que nos puxe as orelhas quando dizemos “chiça!”, quanto mais o colorido vocabulário que exibiam naquele momento.
Eram carvalhos para um lado, filhos da fruta para o outro, e apesar de não estar muito habituado a este tipo de linguagem que os meus dois novos amigos de ocasião usavam, não era de todo estranho para mim. Afinal eu vivia por cima de uma serralharia.

A dado momento chega a minha avó, cumprindo com o seu dever de se inteirar da minha segurança. Afinal estávamos ainda no início dos anos 80, e podiam passar por ali uns tipos das FP-25 e rapraterem-me, nunca se sabe. Ao vê-la aproximar-se, pedi aos meus companheiros contenção no calão, mas logo por azar nesse momento um deles chuta a bola para o meio da estrada, e o outro berra “Cara..., olha para esta merda! Agora vai lá buscá-la. F...-se!”. Recordo-me bem da expressão de horror da minha avó, com os olhos quase a sairem-lhe das órbitas. Pegou na minha mão e disse: “vamos embora que não te quero a brincar com estes malcriados”. Passei o resto da tarde na antecâmara da morte que era o consultório da terceira idade. Talvez tivessem sido apenas alguns instantes, mas pareceram-me uma vida inteira.

Quando penso no que isto me custou, ou noutras consultas em que acompanhei a minha avó e tudo o que havia para ler no consultório sombrio a cheirar a éter eram revistas da TV Guia do mês retrasado, penso no que devem sentir os velhos solitários, dias após dias entre quatro paredes, sem sentir uma presença humana ou escutar uma única voz a não ser a sua. Isto é, se falarem sozinhos, o que não tem mal nenhum, pois não há ali ninguém para os chamar de “malucos”. Antes houvesse. É uma angústia que comparada com a minha, que descrevi acima, é multiplicada por mil.

Para quem chega a velho, depois de uma vida inteira de trabalho, a educar os filhos, e no fim não querer mais que um pouco de paz e uma merecida dose de respeito pelo seu esforço, custa ficar sozinho. Quando parte o companheiro ou companheira, tem-se casa própria e meios de subsistência, e ainda sobram forças e discernimento para evitar ser internado num asilo, a solidão dói especialmente. Os filhos estão ocupados a cavar a sua própria solidão, convencidos de que o que fizerem pelos seus próprios filhos lhes garante uma velhice rodeado deles, das noras e dos netinhos, como o Buda naqueles bonecos de seda que se compravam nas antigas lojas dos 300. No fim fica-se sem entender muito bem que mal fizemos para que ninguém se lembre que existimos.

A casa parece enorme quando se está só. Ter um cão ou um gato não adianta muito, pois os animais desconfiam e acabam por partilhar da solidão, e os canários ou peixinhos de aquário não fazem muita companhia. É uma festa quando o telefone toca, e se for uma daquelas falcatruas do “time-sharing” que oferece um jantar grátis num hotel se acertarem em três receitas de bacalhau, respondem, vão ao jantar, e compram a merda das férias. Pelo menos gastaram uns cartuchos. Se aparecem Testemunhas de Jeová à porta, convidam-nos para entrar, oferecem-lhes chá e bolachinhas, escutam-nos com a máxima atenção e quando se esgota o reportório, é a vez deles contarem a história da sua vida. As Testemunhas de Jeová acabam por desistir primeiro, e referenciam as casas dos velhos solitários como “zonas de alto risco”, a evitar.

Quem tem um pouco mais de iniciativa ou mesmo um algum dinheiro de sobra, frequenta locais de convívio onde conhece outros velhos solitários, ou participa naquelas excursões a Badajoz ou Ayamonte onde partem de madrugada e voltam no mesmo dia à noite, passando a maior parte do tempo no autocarro. Se arranjam um companheiro, intervêm os filhos, preocupados em saber se estão a ser burlados, e se está alguém a querer deitar-lhes a mão à herança. Dói aos velhos que os novos pensem que já não sabem o que estão a fazer, e se por acaso se manifestam, ainda lhes dizem que são rabujentos, ou que estão gagás. Um velho solitário sabe que o tempo lhe escorre por entre os dedos como os grãos de areia sequinha da praia, e o seu maior medo é adormecer e não acordar. Deve ser por isso que acordam sempre cedo. Têm pavor de morrer e só se dar por isso quando começam a cheirar mal, e os vizinhos chamam a polícia. Alguns vizinhos mais jovens oferecem-se para ajudar, visitam-nos e amiúde perguntam-lhes se precisam de alguma coisa. Muitos velhos entendem isto como um insulto, e que lhes estão a chamar de inválidos.

A solidão assusta, e quanto mais cedo chega mais assustadora se torna. Algumas pessoas que optaram por nunca casar ou ter filhos, chegam aos 50 ou 60 anos sozinhas, e percebem que o tempo que gozaram sem precisar de aturar ninguém, trocar as fraldas aos filhos ou ficar a tomar conta dos netos quando os anteriores vão ao cinema de pouco ou nada lhes valeu. Se já nos começa a causar impressão um dia em que nos sentimos especialmente vulneráveis, com vontade de falar com alguém, mas toda a gente que conhecemos está ocupada ou tem o telefone desligado, imaginem o que será não ter sequer um número para onde ligar. Se nos queixamos das chatices que nos dão todos os que nos rodeiam, e por vezes pensamos que era melhor estarmos sozinhos, não sabemos a sorte que temos. Falamos de barriga e de casa cheia. A alternativa é um risco que muitos não gostariamos de correr.

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