quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Crime público...e porque não?


O programa Fórum Macau da TDM, já um clássico dos domingos de manhã no que toca ao debate da actualidade local, abordou esta semana a temática da violência doméstica. Entre candidatos às eleições para a Assembleia Legislativa do próximo mês, associações de cariz social e de apoio às mulheres e assistentes sociais encontravam-se ainda vítimas de violência doméstica, e convidados de Hong Kong que falaram da situação na RAE vizinha desde que este tipo de violência passou a constituir crime público. E foi principalmente isso que esteve em cima da mesa: deverá a violência doméstica ser considerado crime público em Macau? E que consequências poderá isso ter no tecido social da sociedade? E qual a diferença entre crime público e crime não-público?

Se existe pressão da parte de alguns sectores da sociedade no sentido de tornar a violência doméstica um crime público, é porque realmente são inúmeros os casos de agressão por parte de um parceiro doméstico a outro. Ontem juntaram-se onze cabeças-de-lista das 20 candidaturas que concorrem às eleições do próximo dia 15, o que dá a entender que o tema reúne algum consenso na sociedade – o que demonstra alguma evolução da mesma. O conceito de parceiro doméstico é bastante abrangente, mas para efeitos de argumentação, consideremos a situação mais comum: um homem e uma mulher, casados, normalmente com filhos menores a seu cargo. Há alguns meses foi considerada uma proposta para alterar a lei, mas foi rejeitada com o pretexto de que isto poderia “interferir com a harmonia familiar”. Isto foi interpretado por muitos como uma piada, pois para qualquer pessoa civilizada um homem que agride a sua mulher é merecedor de castigo, mas o que iria mudar caso a violência doméstica se tornasse crime público?

Por crime não público, e isto sem entrar numa interpretação do direito em geral ou do código penal em particular, entende-se qualquer ofensa à propriedade privada, à integridade física ou às liberdades individuais. Em suma, ninguém pode responder perante a sociedade por ter riscado o carro ou envenenado o cão do vizinho. No caso do crime não-público, não há interferência dos Ministério Público e os tribunais têm um papel meramente arbitrário. Caso as partes, ofendido e réu, cheguem a acordo, o primeiro pode retirar a queixa. O crime público inclui delitos graves como o furto, o homicídio ou o tráfico de droga, a acusação cabe ao Ministério Público e a queixa tem basicamente o papel de denúncia. No caso da violência doméstica se tornar crime público, uma mulher que denuncie o companheiro não terá a oportunidade de se arrepender e retirar a queixa. É isto que faz temer pela tal “harmonia familiar”. Já se sabe, as mulheres têm um temperamento difícil e não pensam duas vezes, e por vezes fazem porcaria que as podem meter, a si e aos seus, em grandes sarilhos.

No entanto em Macau a violência doméstica já é crime semi-público, como recordou o director da DSAJ, André Cheong. Se o conceito de crime público e não-público foram abordados no parágrafo anterior, o que é este “crime semi-público”? Algo que se senta na cerca entre os outros dois, e não é carne nem é peixe? Mais ou menos isso. Neste caso a acusação pode ou não ser produzida pelo MP, dependendo da gravidade. Escusado será dizer que num caso onde um dos cônjuges exerça um grau de violência sobre o outro que o leve a perder a vida ou à incapacidade total, o MP interfere. Tudo depende do número de escoriações, nódoas negras, dentes partidos ou ossos fracturados. Para os defensores da criminalização pública da violência doméstica, isto não é suficiente, pois deixa a vítima vulnerável a pressões da parte do agressor e de terceiros.

A mulher é na esmagadora maioria dos casos a parte fraca da violência doméstica. Mesmo que reúna a coragem para apresentar queixa – o que normalmente só acontecesse depois de repetidas agressões – é pressionada pelo marido para a retirar, e em alguns casos pela restante família e até pelos amigos, tudo em nome da “unidade familiar”. Da parte do agressor, estas pressões passam facilmente a ameaças, e em muitos casos a mais agressões. Assim, um homem que recorra à violência para resolver as suas questões conjugais fá-lo consciente de que dificilmente sofrerá consequências pelos seus actos. A maior parte das famílias em Macau, uma sociedade vincadamente patriarca, depende sobretudo dos rendimentos do homem, o cabeça-de-casal. Nos casos em que a queixosa é uma doméstica, e portanto sem rendimentos, levar avante um processo judicial pode-lhe trazer dissabores. Fica exposta à miséria, à dependência de familiares e amigos, e isto quando não encontra a censura dos próprios pais, que dificilmente entendem o seu sofrimento, que consideram apenas “rebeldia”. As mentalidades locais não estão preparadas para aceitar este tipo de “modernidade”.

O próprio Executivo torce o nariz a uma eventual criminalização pública, e vai ficando do lado dos mais tradicionalistas, a quem faltam argumentos para considerar que a violência doméstica pode ser resolvida com ponderação e diálogo. Como se pode dialogar com alguém que inicialmente optou pela via da violência? O problema é que os grosso dos empresários e chefes dos clãs mais endinheirados são homens, em muitos casos com amantes, concubinas, segundas famílias na China continental e mais uma parangona de “sinais de masculinidade”, próprias do macho-alfa entre os animais selvagens, e pode ser um problema. Imaginem um cleptocrata qualquer ir parar no xilindró não porque desviou centenas de milhões de patacas, mas porque a esposa fez queixinhas de que ele lhe atirou com o vaso Ming que estava na sala e obrigou-a a ir de helicóptero para Hong Kong de urgência levar dois pontos na testa?

É risível a atitude da Associação das Mulheres, ligada com os tais sectores tradicionais. Consideram “arriscado” a opção do crime público, e falam em “prevenção”. Que prevenção é esta de que falam? Um polícia à porta de cada moradia de família para se certificar que ninguém atira um copo à cabeça do cônjuge, e ainda bata à porta de meia em meia hora para perguntar de está tudo em ordem? Uma associação que supostamente defende as mulheres e devia destacar a importância do elemento feminino na sociedade dá assim a entender que as mulheres são umas coitadinhas, que sem o marido não são ninguém, e até nem se importa de levar um bocadinho de porrada de quando em vez, pois isso quer dizer que ele “a ama”. Mas isto não é nada de surpreendente ou sequer de inédito. Esta é uma daquelas associações que dançam ao som da música de quem manda, e se amanhã o Executivo muda de ideias e torna a criminilazação da violência doméstica uma prioridade, vão arranjar forma de dizer que sim, sim, são contra a violência doméstica desde pequeninos, e é um horror, todos presos já. Metem nojo, enfim.

O fundamental no propósito de tornar a violência doméstica um crime público é passar a mensagem de que se trata de algo reprovável, censurado pela maior parte da população minimamente civilizada, e que se deve pensar duas vezes antes de se recorrer à agressão contra alguém mais fraco, com quem ainda por cima nos unem laços matrimoniais, ou se partilha uma vida conjugal. Fico surpreendido que numa jurisprudência como a de Macau, onde se privilegiam as medidas preventivas e dissuasórias, existam tantas reservas neste particular. O importante é que as vítimas da violência doméstica não desistam, e que os grupos que fazem pressão para que se torne crime público não se deixem arrastar pela inércia, caindo na conversa de quem não quer mexer um dedo porque acha que as coisas estão bem como estão, e é melhor não mexer para não estragar. É que para os homens que batem nas mulheres, não há desculpa. E é necessário que isto se torne do domínio público, e aos olhos da lei.

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