sábado, 8 de junho de 2013

Provedor do leitor (para a Lisa Tavares)


Na edição electrónica do Hoje Macau de 19 de Maio foi publicado um comentário no artigo “Não pagamos (ou pagamos menos)”, da minha autoria. O comentário em questão foi publicado no mesmo dia, mas apenas ontem veio à minha atenção enquanto organizava ficheiros. A autora do comentário identifica-se apenas como Lisa Tavares, e o comentário é aqui reproduzido na íntegra:

Escrito de forma leviana por alguém que está muito mal informado sobre a situação das trabalhadoras do sexo, quer em Portugal, quer em Macau, idealizando de forma irresponsável esta última. Não existe por parte deste autor a mínima compreensão deste fenómeno em Macau. Isto é apenas uma visão clientelista, ainda por cima imatura, que não relata de todo o típico comportamento de um Português, e que muito desprestigia este jornal. Mais grave ainda, é profundamente ignorante das sérias questões sociais que vitimizam as trabalhadoras do sexo. Portanto, este artigo é um atentado aos géneros, às questão que levanta sem a competência e o tacto para o fazer, e, acima de tudo, mostra um profundo desprezo pela humanidade das partes envolvidas.

Em primeiro lugar gostava de agradecer o comentário, apesar da evidente discordância com o tratamento do tema do artigo. Quando o diz que o fiz de forma “leviana”, está coberta de razão. Foi completamente intencional a abordagem que fiz ao tema em questão. Compreendo que não consiga dissociar a componente do drama e da degradação humana implícito no fenómeno da prostituição, que para si é unicamente um “problema social”. Tenho o mesmo problema com aquela jovem que sobreviveu a um linfoma e recentemente obteve algum protagonismo apelando aos doentes oncológicos que enfrentem a doença com humor. Eu pessoalmente não consigo rir do cancro, portanto considero que se faça humor com quem sofre (mesmo POR quem sofre) um “desprezo pela humanidade”.

Não sei se a Lisa Tavares reside em Macau, mas se não é esse o caso, deixe-me esclarecer alguns pontos do meu artigo que, como mulher que é, compreendo que lhe causem algum choque. Em primeiro lugar a prostituição em Macau é uma indústria que emprega milhares de mulheres originárias de países asiáticos e não só, que na sua maioria exerce a profissão de forma voluntária. Como a prostituição é (ainda) ilegal, recorre-se normalmente a expedientes que a dissimulam, como saunas, salões de massagens ou clubes nocturnos. Existe ainda prostituição em regime de “free-lancing”, mulheres que vêem para o território com um visto individual, alugam um quarto e angariam clientes – muitas vezes na rua. A carga dramática que a Lisa Tavares refere, e que se verifica muito em Portugal e outros países do Ocidente não existe aqui nos mesmos moldes. Devido à sua exiguidade e aglomeração urbanística, é improvável que existam caves escuras onde mulheres acorrentadas são obrigadas a prostituir-se depois de traficadas por sindicatos de crime internacionais. Não afirmo categoricamente que não existam casos pontuais, mas posso garantir-lhe que a esmagadora maioria vem para o território exercer a profissão na plenitude da sua consciência.

A “imaturidade” que a Lisa Tavares refere deve estar associada ao facto de eu próprio conhecer alguns pontos onde se pratica a prostituição. Saiba que basta viver em Macau alguns anos para se saber onde encontrá-los. Como já referi mais que uma vez, é mais fácil encontrar uma prostituta que um táxi. Posso garantir-lhe que não estou a mentir quando digo que os portugueses são conhecidos por “aqueles tipos que querem comer e não gostam de pagar” (“comer” não foi a expressão utilizada, mas vamos tentar manter o nível). Ouvi isto da boca de mais do que uma mulher, e nem todas eram prostitutas. A parte onde digo que um português ou outro qualquer ocidental é ignorado pelas (muitas) prostitutas que trabalham no Hotel Lisboa é perfeitamente verificável, e creio que a Lisa Tavares não tem forma de me desmentir. Eu estive lá mais que uma vez e observei. Quer melhor que isto?

Quando se refere ao ponto de vista “clientelista” não sei se está a insinuar que requisito serviços sexuais pagos ou se obtenho lucro através do lenocínio, mas penso que se refere à primeira. Não pago por favores sexuais mas já o fiz, e sempre em Macau, e não tenho qualquer problema em admiti-lo. Estou no território há duas décadas e a diferença entre mim e qualquer outro homem nas mesmas circunstâncias será apenas a frontalidade da minha parte. Sei que muitas vezes somos confrontados em Portugal com reportagens sobre mulheres que são sequestradas e obrigadas a prostituir-se, outras que têm emprego mas que são obrigadas a prostituir-se em “part-time” porque o salário não lhes chega para pagar as contas ou alimentar os filhos, todo o tipo de testemunhos que fazem chorar as pedras da calçada. Em Macau conheci mulheres que não sendo oficialmente prostitutas não se importam de fazer sexo por dinheiro para poder comprar roupa de marca ou o último modelo do iPhone. Acredite se quiser, mas sei muito bem do que falo.

Quanto ao “comportamento típico do português”, e ainda bem que toca nesse assunto, melhorou muito desde a transferência de soberania de Macau para a China. Antigamente era comum os portugueses abusarem sexualmente das empregadas domésticas ou de outras trabalhadoras residentes a seu cargo, que se sujeitavam aos abusos com receio de perder o emprego e o visto de trabalho e assim regressarem ao seu país de origem. Estes portugueses – que felizmente na maior parte não têm lugar no Macau actual – não só se orgulhavam desta conduta como faziam questão de ostentar e contar as suas escapadelas junto do seu círculo de amigos, e mesmo junto de desconhecidos. No meu artigo dou ênfase à natureza romântica e até “marialva” das nossas gentes, e evitei abordar este aspecto menos digno. Mas já que a Lisa Tavares teve a sorte de só ter conhecido cavalheiros nas suas relações pessoais, permita-me o desabafo.

Contudo não lhe tolero o tom com que tão gratuitamente julga os critérios editoriais do jornal para o qual escrevo semanalmente. Reconheço o seu direito à indignação, mas fale por si. Nada do que digo “desprestigia” o jornal em questão, que me dá toda a liberdade para escrever tudo o que me apetece. Apesar do pseudónimo, estou perfeitamente identificado e assumo tudo o que escrevo. Talvez a Lisa Tavares deva alargar um pouco mais os seus horizontes, deixar os seus conhecimentos sobre o tema da prostituição que adquiriu “in libro” e tentar perceber melhor esta motivação que torna a profissão “mais antiga do mundo” uma realidade com que somos obrigados a conviver.

Obrigado pelo seu tempo, e cumprimentos cordiais.

Leocardo

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