A situação dos transportes públicos em Macau começa a tomar contornos anedóticos, e deverão ser poucos os residentes que tenham uma opinião realmente positiva do serviço de autocarros proporcionado pelas três concessionárias actualmente a operar. Já é um tanto ou quanto peculiar que num território pequeno com pouco mais de meio milhão de habitantes existam três companhias de autocarros, e antes da criação do cartão Macau Pass, que unificou o serviço de tarifas pré-pagas, era comum a confusão entre as concessionárias da Transmac e da TCM, e para baralhar ainda mais chegou a francesa Reolian, que apesar de se distinguir pelos veículos verdes, tem encontrado dificuldades desde a primeira hora. O número mais que excessivo de incidentes e acidentes, que resultaram em fatalidades e feridos graves tem sido a imagem de marca da Reolian, e nem a alegada falta de experiência dos seus motoristas serve de justificação para os sucessivos precalços. Talvez seja um problema de “feng-shui”, puro azar. Isso explicaria muita coisa.
A juntar-se ao “problema” dos autocarros está o aumento de número de automóveis e motociclos, bem como a proliferação de autocarros particulares ao serviço das concessionárias de jogo e agências de turismo e a indisciplina dos taxistas. As soluções para o problema do congestionamento e da escassez dos parques automóveis têm-se relevado curtas e ineficazes, e no meio deste fogo cruzado está a recém-criada Direcção de Serviços de Assuntos de Tráfego (DSAT), desanexada do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), sob a sua alçada da Secretaria para as Obras Públicas e Transportes. A DSAT surgiu como organismo semi-independente , com o objectivo de resolver um problema que afecta toda a população. É de louvar que se tenha dado atenção à questão do trânsito, mas a medida acabou por ter um efeito preverso. A DSAT é actualmente vista pela opinião pública em geral como um departamento incompetente e inútil. Pelo menos existe alguém a quem apontar o dedo quando se fala do problema do trânsito.
O director desta DSAT e alvo desta chuva de críticas é Wong Wan, funcionário de longa data do IACM que tem desde a primeira hora liderado a equipa que ficou encarregada de tornar Macau uma cidade melhor para se andar de carro e de trasnsportes públicos – e já agora a pé, que os problemas do tráfego também dizem respeito aos peões. Jocosamente apelidade em algumas redes sociais de “Wrong Man”, este Wong Wan tem realmente provado ser o homem errado no lugar errado. Não é justo atribuir-lhe todas as responsabilidades por todos os problemas, mas a imagem do director da DSAT estará beliscada ao ponto de o mínimo que se esperava dele era que se demitisse. Nem que fosse para que realmente se saiba se o problema é mesmo seu, ou se o estado calamitoso do tráfego em Macau passa por tomar outras medidas além da criação de um departamento que assuma todas as responsabilidades. O puxão de orelhas recentemente dado pelo secretário Lau Sio Io a Wong Wan é já por si suficiente para que o último cedesse o lugar e aguardasse que alguém viesse fazer melhor. No fim do campeonato faziam-se as contas.
O problema é que Wong Wan não sai, nem que o mandem embora. Na eventualidade da situação se tornar incomportável e não existir mais margem de manobra, poderá encontrar alguma saída airosa e alegar “motivos pessoais” para se demitir, mas repito, a situação teria que se tornar mesmo caótica. Seria preciso bater no fundo. Ao contrário do que estamos habituados a ver em Portugal, onde ministros e secretários de estado se demitem às vezes por tudo e por nada, em Macau não existe acumulação de cargos, e da direcção da DSAT, Wong Wan sairia provevelmente para o desemprego – ou pior, regressaria ao seu posto anterior no IACM, o que para os rígidos critérios da cultura chinesa aplicada à máquina administrativa, isto seria uma enorme “perda de face”. Em Macau os detentores de cargos públicos aceitam apenas três saídas: promoção, transferência para outras funções de igual importância, mesmo que simbólicas, ou aposentação. Despromoção é que nem pensar. Seria alvo da chacota dos ex-colegas, alguns que se aproveitariam para ajustar eventuais contas antigas. A única excepção foi o ex-secretário Ao Man Long, mas esse foi um caso tão extremo que não se equipara a uma mera despromoção e perda de face – aos olhos do “sistema” isto foi uma “tragédia”.
Este sistema que apenas permite que os altos quadros se movam para cima e para os lados é propício a que apareçam vícios diversos. Desde logo a prepotência, que não deixa lugar ao diálogo e leva a que as vozes discordantes sejam abafadas e os “rebeldes” sejam postos de parte. Quem não obedeça cegamente é rotulado de “grão de areia na engrenagem”, alguém que “deseja que as coisas corram mal”, e é vetado ao isolamento, sem perspectivas de futuro. Frases como “eu penso que”, “discordo”, “acho que não” ou mesmo um inocente “permita-me uma sugestão” constam do livro secreto de “Coisas que nunca se devem dizer ao chefe”. O autismo do “yes, sir” e o acatamento escrupuloso das regras, mesmo as mais descabidas, são a única opção de carreira sensatas. Quem curva as costas como um momo, leva sempre consigo a caixa de engraxate e não tem problemas de consciência em ser “bufo” torna-se “de confiança”, merecedor dos maiores encómios, e tem pela frente um futuro risonho. Pouco importa que não seja capaz de pensar pela própria cabeça.
A população vem assistindo impávida e serena a esta feira de vaidades, às intrigas palacianas, ao espectáculo do respeitinho e da obediência em nome do “bem comum”. E aqui a palavra “bem” é usada de forma muito leviana; quer dizer, as coisas vão funcionando, enfim. Só em Macau e em algumas repúblicas das bananas por esse mundo fora o Executivo é composto na sua maioria pelos mesmos responsáveis há mais de 13 anos. E porque havia se ser diferente? Não existe oposição com gente nova que se perfile como alternativa credível, não existe um órgão que desempenhe um papel fiscalizador digno desse nome, apesar da Assembleia Legislativa ter por inerência essa função, mas apenas no papel. É a mentalidade do partido único em todo o seu esplendor. Em Portugal Wong Wan batia com a porta e ia tratar da vidinha longe dos olhares críticos e desta chatice toda que lhe tira o sono. Em Macau fica a fazer figas para que as coisas corram melhor, pronto, e pode ser que as vozes dissonantes se calem, esqueçam as cambalhotas da DSAT e se entretenham com outra bronca qualquer. É só preciso agarrar-se ao tacho com as duas mãos e com força. E a julgar pela envergadura do senhor, vai ser difícil arrancá-lo das mãos.
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