Comemora-se hoje o Dia Mundial da Criança, uma data que na minha infância era o meu dia favorito depois do aniversário, mas da perspectiva de adulto deixa-me um tanto deprimido. Aos olhos de uma criança, da sua inocência e ternurenta ignorância de quem tem todo o tempo do mundo pela frente para aprender os mecanismos do cinismo dos adultos, é um dia de festa. Neste dia os meus pais compravam-me uma prenda, os professores eram mais tolerantes com as “malandrices” dos estudantes, saíamos com os amigos e tomávamos as ruas de assalto, era o “nosso dia”, era praticamente um feriado. Hoje vemos, ouvimos e lemos, como dizia a canção do Francisco Fanhais, e não podemos mesmo ignorar. Existem em todo o mundo crianças a viver e a morrer em condições miseráveis, a passar fome, obrigadas a trabalhar em regime de escravatura, a prostituirem-se, ensinadas a pedir e a roubar, de arma na mão forçadas a matar em guerras atrozes, sem que saibam sequer o que estão a fazer. São as estatísticas que todos os anos neste dia nos deixam com o coração nas mãos, e que nos fazem olhar para os nossos filhos e outras crianças felizes e saudáveis sem que nos apeteça partilhar a sua alegria. Antes olhamos para eles com um ar de comiseração e de sorriso amarelo enquanto pensamos: “Coitados, nem sabem a sorte que têm…”
A infância é um estado passageiro, como que um casulo que mais cedo ou mais tarde se rompe e de lá sai mais um adulto. Ninguém é criança para sempre, e quem se recusa a envelhecer e entrar nesta cruel engrenagem que é a vida adulta sofre daquilo que a psicologia designa por “síndrome de Peter Pan”, tirado do nome da personagem de J.M. Barrie, o menino que se recusava a ser homem. E quantos de nós nunca sonhou nunca crescer, ficar para sempre na Terra do Nunca e poder voar? Não pode ser assim tão mau. Infelizmente quem não se consegue desligar um dia da fantasia de que é feito o mundo infantil é mais cedo ou mais tarde tido como “inadaptado”, “desfuncional” ou “imaturo”, e outras designações que os adultos cunharam para nos estragarem a festa. Não há nada mais triste do que ouvir dizer um dia: “Acabou a brincadeira”.
Para quem, como eu e certamente o amigo leitor, passou uma infância feliz ou pelo menos normal conhece o prazer de ser um pequeno pateta sem responsabilidades e que ninguém leva a sério. Hoje somos levados a sério, pois é, mas estavamos melhor antes. Podiamos dizer os maiores disparates sem que por isso fossemos chamados de “palhaços”, fazer travessuras que hoje dariam direito a um lugar no hospício ou uma noite na esquadra, tinhamos comportamentos que num adulto seriam considerados no mínimo bizarros. Imaginem um grupo de homens de 30 anos a brincar às escondidas na rua, ou a sair de um filme de acção a imitar o Rambo. Ser criança é como ser um agente secreto, só que em vez de licença para matar, temos licença para disparatar. Mesmo quando sentíamos os calos apertados, havia sempre alguém que nos resgatava com um “deixem lá…afinal são só miúdos”. Éramos miúdos, sim senhor, e para nós qualquer tipo com mais de 30 anos era um “cota” à beira da morte.
Ser criança é uma descoberta constante. Aborrece-me que hoje já nada me encante, surpreenda ou impressione. Quando era puto qualquer parvoíce me causava espanto, qualquer inanidade merecia um olhar mais demorado. Adorava sair durante uma tempestade, ficava fascinado com os vendedores de peixe no mercado, não perdia um tempo de antena durante as eleições, e dizia que era do MRPP (isto prova que o camarada Arnaldo Matos falava para pessoas com a idade mental de 9 anos). Na 4ª classe sonhava em ser tratador dos leões no Jardim Zoológico ou empregado numa bomba de gasolina – estar ali de mangueira na mão a atestar o depósito era uma posição de poder. Sem mim os carros não andavam todos, bolas. Quando tinha 10 anos dei com o meu pai a arquivar recibos e a preencher formulários, e isto deixava-me preocupado. Cheguei perto dele e disse-lhe: “Um dia tens de me ensinar a fazer isto”. O velho fez-me uma festinha e riu-se do meu sinal primitivo de maturidade.
Depois da infância chega a adolescência (devia existir um dia mundial da adolescência, com as lojas a oferecer promoções de Clesaril), a intensidade da descoberta é maior, e começamos a ter pressa em ser adultos – agora não entendo bem porquê. Bebemos as primeiras jolas, começamos a olhar para as miúdas. Fumamos os primeiros cigarros à escondida dos pais, fazemos a barba, mesmo que esta consista numa massa amorfa de capilosidade facial, e adoptamos atitudes que nos parecem ser de adulto. Jogamos snooker no café até tarde (11 da noite era “tarde”), coçamos os diminutos tomates e soltamos de vez em quando um “foda-se” que nos faça parecer mais homenzinhos. A tendência para mentir, exagerar e contar vantagem é um dos sintomas do crescimento, e deve ser a única fase onde se podem insultar os amigos e mandá-los ir levar no tal sítio sem que disso advenham consequências. Como estávamos enganados. Doce e inocentemente iludidos.
Mais um Dia da Criança portanto, mais um primeiro de Junho, que para eles é uma festa e para nós uma oportunidade de reflectir sobre os males do mundo e lembrar os pequenos infelizes que provavelmente nem sabem que existe um dia dedicado a eles. Depois das boas intenções da prache, dos discursos hipócritas de políticos e outros mentirosos que nos lembram que as crianças são o nosso maior património, o nosso futuro e tudo mais, amanhã é dia 2 e mais ninguém se lembra. O que me lembro bem é dos meus tempos de infância, e do desprezo a que os velhos, invejosos da frescura e da pujança da juventude, nos vetavam, queixando-se de que “não os respeitavam” e de que no tempo deles é que era bom e tal. Hoje estão todos no além, coitados, e um dia chega a minha vez. É por isso que prefiro tratar os putos com respeito. Assusta-me pensar que um dia me dêm um pontapé na bengala e depois me pisem em cima quando estiver estendido no chão. Paz, pequenotes. E já agora, um dia muito feliz para vocês.
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