sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Gato por lebre


Para quem ainda não leu, aqui fica o artigo de ontem publicado no Hoje Macau. Bom fim-de-semana.

I

Um amigo contou-me um episódio que se passou há alguns meses num restaurante “português” em Macau (digo “português” entre aspas e já explico porquê), onde um turista da China continental pediu um prato de sardinhas assadas. Chegado o prato à mesa, o senhor chamou a empregada e explicou-lhe num tom paternalista que “a pele das sardinhas tinha que ser retirada antes de serem assadas”. E aparentemente estava mesmo a falar a sério. Desconheço o resultado da reclamação deste ‘sardinhólogo’ de trazer por casa, mas é bem demonstrativo o que a maior parte dos turistas e mesmo alguns residentes sabem da típica comida portuguesa: nada. A culpa também não é deles, pois afinal contam-se pelos dedos de uma mão os restaurantes em Macau que servem a genuína comida portuguesa. É verdade que não é fácil fazer igual ou parecido com o que se faz em Portugal; faltam-nos alguns ingredientes, a qualidade dos legumes é outra, e sobretudo falta o nosso mar, que é único. Mas em muitos casos existe uma grande dose de laxismo por parte de alguns empresários da restauração, que podiam fazer bem melhor. Muitos restaurantes ditos “portugueses” oferecem uma interpretação local e mesmo pessoal da comida portuguesa, especialmente alguns na Taipa bastante frequentados por turistas de Hong Kong e do continente. Por mais de cem patacas por dose servem 1 (um) camarão-tigre assado, ou uma casca de caranguejo sem nada que se coma mergulhada num molho inexplicável, pastéis de bacalhau com vestígios do fiel amigo, ou nem isso, filetes de um peixe anónimo encharcados de óleo, pratos cheios de arroz ou de batatas fritas congeladas com o único intuito de encher a barriga ao freguês. E como é isto comida portuguesa? Simples: juntam-se umas azeitonas, umas lascas de chouriço e umas rodelas de pimento e ‘voilá’, comida portuguesa. Era urgente que existisse uma certificação, como já alguém sugeriu, que indicasse os restaurantes onde se serve a autêntica comida portuguesa. Com o que temos por aí, a nossa cozinha, uma das mais ricas e originais do mundo, fica muito mal representada. Era importante que se deixasse de vender gato por lebre. E eu adoro lebre!

II

Estava eu no último sábado no Festival da Lusofonia, que mais uma vez foi um espectáculo, quando ouvi uma conversa entre dois jovens casais portugueses que me chamou a atenção. Um deles tinha encontrado um T2 espaçoso num dos edifícios novos da zona norte da cidade pela “módica” quantia de 8500 patacas por mês. O outro casal decidiu depressa, e todos concordaram em alugar o apartamento e dividir a renda, antes que esta magnífica oportunidade fosse aproveitada por outros. Fiquei a pensar da primeira vez que aluguei uma casa em Macau, um T2 em frente ao Hospital Kiang Wu, por 2500 patacas, num prédio antigo. Depois mudei-me para outro T2 num famoso edifício na Areia Preta por apenas 3300 patacas mensais. É verdade que os tempos eram outros, mas fico sem perceber muito bem porque é que os preços dos alugueres mais que duplicaram, e em alguns casos triplicaram, em menos de vinte anos, sem que nada o justifique. A qualidade da construção é a mesma, o espaço é reduzido e as localizações são irrelevantes. E por falar em qualidade, o caso do Edifício Sin Fong fez soar o alarme: algumas das construções que por aí andam não valem metade daquilo que se pede por elas. O que aconteceu com o Sin Fong até teria alguma piada, não fosse pelo facto de centenas de famílias terem ficado do dia para a noite sem um sítio para morar. Para piorar a situação, os edifícios circundantes naquela área aumentaram as rendas em 10% quase imediatamente. Que gente sem escrúpulos é esta que se aproveita da desgraça alheia para meter mais alguns patacos ao bolso? Na realidade muitos dos proprietários até não são más pessoas de todo, mas são puxados pelas agências de fomento imobiliário – muitas vindas de fora de Macau – a praticar verdadeiros assaltos a quem procura casa. E isto sem que ninguém ponha um travão ou meta uma mão. É triste que existam pessoas que tenham que pagar mais de 300 patacas por dia para ter um tecto, que não tenham a sua privacidade porque precisam de dividir a renda com outros, às vezes estranhos, ou que em Macau, onde há dinheiro para tudo e mais alguma coisa, a despesa com a habitação pese no bolso dos residentes e que lhes dê dores de cabeça. A famosa afirmação do nosso Chefe de que “o mercado é livre e não se pode interferir” arrisca-se a fazer parte do já largo anedotário dos responsáveis do Executivo da RAEM, que deviam antes zelar pelo bem-estar e pela qualidade de vida da população. Será mesmo preciso uma interferência e um puxar de orelhas vindo lá de cima?

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