Tive o prazer de ouvir hoje a repetição do programa “Contraponto” da Rádio Macau, com Carlos Morais José e Sérgio Terra, e em cima da mesa estiveram temas como o relatório do CCAC sobre o IPM, o protesto contra a CTM e a candidatura de José Miguel Encarnação pelo PNR ao círculo fora da Europa nas próximas legislativas.
Gostava hoje de me debruçar sobre o primeiro assunto, que me leva de novo a falar da qualidade, ou da falta dela, do ensino em Macau. Não importa muito se o IPM é mal gerido, ou se a Universidade de São José facilita nos exames, ou se as instituições de ensino superior da RAEM são autênticas fábricas de canudos, que não dotam os licenciados das qualidades técnicas que deviam. Os jovens de Macau, os oumunyan, tiram o tal canudo na UMAC ou noutro sítio qualquer, arranjam um emprego médio, e os especialistas ou estudam lá fora ou vêm mesmo do estrangeiro. E assim continua a funcionar a máquina, um pouco aos solavancos, nada de realmente preocupante.
O problema começa mais cedo do que se pensa: os jovens de Macau não aprendem nada durante os 12 anos de escolaridade pré-universitária. Sofrem de uma falta de cultura geral gritante, desconhecem o que se passa além das brincadeiras, das jogatinas, das compras e dos cosméticos que são o seu mundo. No outro dia lanchava com um grupo de amigas, e uma delas disse-me que “adorou Portugal”, e especialmente “aquela zona ali entre Cascais, Aveiro...”. Depois de lhe explicar que Aveiro é muito longe de Cascais, perguntei-lhe se sabia onde eram as províncias de Anhui ou de Gansu, e adiantou-me que “não conhecia a Geografia da China”.
Os oumunyan, apesar de serem chineses não sabem nada da China, não são capazes de apontar uma província no mapa e não sabem onde ficam as cidades mais importantes. Só sabem que nasceram chineses, aprenderam que têm que “amar a pátria”, e mais nada. Querem é distância dos gajos da China continental, e não querem ser confundidos. Têm nacionalidade portuguesa, mas Portugal para eles não chega a ser uma realidade diferente: não é uma realidade de todo. O passaporte português é para eles um mero documento de viagem. Sendo etnicamente chineses mas distanciando-se da China, e sendo portugueses de nacionalidade não se consideram portugueses em mais nada. Conclusão: são tecnicamente apátridas.
Quem é apátrida não tem identidade – e perdoem-me se isto soa um pouco a nacionalismo – mas quem não tem uma identidade e uma cultura própria, uma matriz, não pode ter uma visão que ambicione a ganhar uma bagagem cultural ou se interesse por qualquer tipo de especialidade. Qual é a carreira ou especialidade digna de um território como Macau? Croupier? Bate-fichas? Não é à toa que a internet é monopolizada, lenta e pouco difundida (pelo menos comparada com Hong Kong, dando o exemplo aqui do lado) – existe um sermão não encomendado de que a internet “pode ser perigosa”, e que é preciso “educar” a população sobre “os perigos da internet’. Para muita gente ainda é “uma coisa nova”. Está tudo dito. Quando o CMJ fala de uma “teoria da conspiração”, eu digo que terá um fundo de verdade.
Digo isto com todo o carinho do mundo, pois neste grupo de oumunyan que descrevo inclui-se a minha mulher. Não é que sejam realmente estúpidos ou que não queiram saber o que se passa no mundo. Foram estupidificados e mal pagos por um sistema de ensino desleixado, medíocre, dominado sobretudo pela igreja, que nunca os deixou pensar pelas próprias cabeças, ou sequer a distinguir o bem do mal. Tornou-os ignorantes de propósito, foi o que foi. Primeiro isto serviu bem ao regime colonial, que dirigiu um enclave de alienados, que no fundo estavam bem melhor do que se estivessem na China, e serve às mil maravilhas à nomenclatura actual, a quem não interessa nada repartir o bolo com gente que não a sua.
O que realmente lhes interessa? “Coisas que façam dinheiro”, dizem eles. E o que faz dinheiro? “Jogar na bolsa” ou “especular no imobiliário”, dizem eles, que não são parvos nenhum (ou são?). Só que jogar na bolsa ou especular é como o karaté: antes de aprender a partir tijolos com a cabeça, primeiro é preciso enchê-la de conhecimento. Conhecimento esse que foi adquirido pelos predadores das Américas, de Hong Kong e outros, que aproveitam para lucrar às custas de Macau, com a cumplicidade dos oumunyan que mandam nisto tudo, e que tal como os outros, acham que está tudo bem, desde que “haja dinheiro”.
Aí está, se “dinheiro” fosse uma nacionalidade, os oumunyan optavam por essa. Não estou aqui a ser redutor, claro que existe muita gente boa e competente de Macau e em Macau, mas não me surpreende nada a atitude permissiva das instituições de ensino, que tratam os canudos como uma mera “chave” para se conseguir um empregozito qualquer. E com esta tendência, Macau só pode ficar a perder.