Sendo pai de dois miúdos macaenses, considero-me em posição priveligiada de notar alguns comportamentos interessantes no que toca à convivência deles com o lado chinês da família. O convívio do dia-a-dia com os primos, apesar de pacífico, de um modo geral, não deixa de ser curioso observar umas pequenas diferenças de cultura que levam a alguns mal-entendidos. É um verdadeiro “clash” entre a cultura do chá e a cultura do chouriço assado.
Quando chega a hora dos trabalhos de casa, ainda conseguem encontrar alguma coisa em comum: a matemática e o chinês, este último com vantagem para os primos, naturalmente. No resto os miúdos chineses até têm alguma curiosidade, pois o ensino em português é diferente. Não passa pela cabeça dos chineses aprender o aparelho reprodutor, por exemplo, logo o 3º ano. Sendo verdadeiros macaenses na acepção do termo, os meus filhos conversam um com o outro ora em português, ora em cantonense.
Quando estão com os primos optam pelo cantonense (ensinei-lhes que falar “em código” na presença de outros é feio), mas às vezes esquecem-se das limitações da família chinesa e misturam no meio das frases em cantonense algumas palavras em português. É uma especificidade interessante da cultura de Macau. Quando se desentendem, é ainda mais extraordinário. Os meus filhos “explodem” ao mínimo incidente, os primos “enchem”, de só depois exteriorizam o desagrado.
Mas não me entendam mal, os miúdos dão-se maravilhosamente bem, e têm imenso em comum, o que naturalmente me deixa feliz. No fundo são como todos nós, portugueses e chineses, na nossa convivência em Macau. Nem sempre nos entendemos, mas damo-nos bem. Em linguagem mais popular, “vamos à bola” uns com os outros, fruto de séculos de convivência. Tenho a certeza que os chineses de Macau, os tais “ou mun ian”, têm um carinho e uma consideração especial por nós. Enquanto os outros ocidentais são apenas “estrangeiros”, nós somos os “portugueses”, a malta que divide aqui o burgo com eles. Os vizinhos do lado.
Claro que a convivência é cheia de pequenos senãos. Nós consideramos os chineses “frios” e distantes, eles consideram-nos “bárbaros”. Deve ser desde o tempo que os primeiros navegadores lusos chegaram à Ásia, e comiam ainda com as mãos, enquanto os chineses já usavam os pauzinhos. Talvez seja culpa do tal sangue latino que nos corre nas veias.
O que mais nos surpreende é provavelmente a forma passiva como eles reagem a certas injustiças, ou o modo muito "zen" com que aceitam certas fatalidades como "inevitabilidades do destino". Ou ainda a forma como evitam a afeição ou o contacto físico com quem conhecem mal. Para nós os "amigalhaços" e as suas fêmeas são corridos a abraços e beijinhos, coisa que eles abominam. É aquilo que muita vez chamamos sub-repticiamente "sangue de barata".
Temos uma atitude muito expressiva, uma presença muito forte, uns gestos muito largos. Gostamos de aparecer na televisão, na rádio, nos jornais. Gostamos quando falam de nós, mesmo que seja mal. Em linguagem futebolística, procuramos o contacto e fazemo-nos ao penalty. Os chineses são mais discretos, pacientes e menos presentes. Jogam pelo seguro, desconfiam da fama, entregam-se com menos facilidade e menos paixão. Para nós a “paixão” é importante, para eles é um risco que precisa de ser bem calculado.
Quando nos aborrecemos com alguém ou com alguma coisa, “partimos a loiça toda”, e não levamos desaforo para casa. Os chineses tiram a chapa à situação, medem-na, e são capazes de esperar anos até resolver uma contenda: é a famosa “vingança do chinês”, o momento em que se “salva a face”. Para um chinês não há nada pior do que “perder a face”, e essa é a pior das humilhações, uma conta que mais cedo ou mais tarde tem que ser saldada.
Mesmo aquilo que para nós é considerado "corrupção" (que palavra tão feia), para eles é considerado a maior parte das vezes uma gratificação. O chinês gosta de simplificar, nos negócios e em todo o resto, e não gosta de ficar a dever nada a ninguém. Conhecem os amigos e dificilmente os traem. Não têm a memória curta - para o bem e para o mal - e são fiéis a quem os trata com deferência. Isso era algo que podiamos aprender com eles, a não ser mal-agradecido.
Eu próprio considero-me um indivíduo impaciente, ansioso e até nervoso, se calhar. Ainda fervo em pouca água, e nem o facto de ter escolhido uma família chinesa como a minha adoptiva melhorou este estado de coisas. Isto causa-me alguns dissabores, pois não sabendo dominar a língua, as minhas atitudes são muitas vezes mal interpretadas. Como fiel da balança tenho a minha mulher, que me vai salvando às vezes de cometer atitudes mais impensadas. Como diz um amigo meu, ainda tenho que "trocar o bacalhau pelo peixe salgado".
Mesmo com culturas tão díspares, com mentalidades diferentes, e com um sentido de humor tão incompatível (que é uma das coisas a que mais me custa habituar), conseguimos ainda viver juntos neste pedacinho de terra que é Macau. E que diabo, damo-nos até bastante bem. É assim que vai funcionando Macau: obrigado é "tou ché", e amigo é "pang yao".