Nôs ficá sirvido

Os Doçi Papiaçam di Macau, liderados pelo incansável Miguel de Senna Fernandes levaram à cena este fim-de-semana a sua nova peça, "Letrado Chapado, Patrono di Gema". A ideia era ironizar e brincar com a justiça em geral e com os advogados em particular, mas o resultado ficou muito aquém das expectativas. Ou os advogados são mesmo uns gajos muito aborrecidos (tinham dúvidas?) ou talvez a brincadeira tenha ficado apenas pelas intenções. Faltou a profundidade, o chiste, o corte de outras obras anteriores, como "Côsa Doutor", de 2007, que acertou em cheio quando criticou o lastimável estado da Saúde do território.

Não quero dizer com isto que a peça de hoje foi má, ou que não foi engraçada, mas penso que muito ficou por dizer. Sinto que o público ficou na expectativa de aprender mais sobre o intrigante mundo da advocacia. As piadas, os trocadilhos, o humor incisivo foram aparecendo timidamente, e sem nunca se concretizar na sua plenitude. O patuá, o linguajar maquista, foi o habitual. Habilmente concretizado pelos actores macaenses em palco, como tem sido todos os anos. Nesse aspecto só muda mesmo o enredo.

Quanto às interpretações, penso que estão cada vez melhor. Germano "Bibi" Guilherme voltou a encher o palco com os seus dotes de actor cómico. Começa a ser difícil de imaginar o que seriam os "Doçi Papiaçam" sem ele. Antes do intervalo e do fim surgiram as maiores risadas da noite, com dois videoclipes intitulados "Patuá em 1 minuto", uma paródia ao "Cantonese in one minute". Curiosamente as palavras "chipi", "chupá" e "dale" são ainda utilizadas no dia-a-dia pela comunidade macaense. Foi bem pensado.

Das restantes interpretações destaco Baby Tabora, uma estreante na lides do patuá, no papel de empregada filipina, e de Herman Comandante no papel de juíz. Curiosamente uma das últimas vezes que fui a tribunal depôr como testemunha, o juíz disse-me "obrigado, pode ir à sua vida". Mais realismo que isto é impossível. Jorge Neto Valente, presidente da Associação de Advogados de Macau, emprestou a voz ao personagem Dr. Sobrinho Forte (eheh), e José Nascimento voltou no papel de um advogado padrão, bem-falante e matreiro (podemos fazer comparações com alguns que conhecemos). Nina Lichtenstein e Alice Meira estiveram muito bem no papel de duas mulheres que lutavam pela herança de um falecido pândego.

Depois do intervalo passou o clipe de "Panchico 3", um trailer de um filme que desta vez pareceu bastante inspirado em "Shawshank Redemption" e "The Green Mile", filmado nos arredores do Estabelecimento Prisional de Macau, e na Escola Portuguesa. É quase preocupante como a cantina da EPM parece mesmo a cantina de uma prisão. Daniel Pinto (o nosso Dani) esteve excelente, e André Couto fez uma aparição surpresa. Os Doçi já tinham feito no ano passado o trailer de "Panchico 2", e na minha humilde opinião penso que a ideia se esgotou aí, de tão curta que era à partida.

Não importa que a peça seja boa ou má. É importante que aconteça. É mais um marco importantíssimo na preservação do patuá e da cultura macaense, e uma oportunidade para a comunidade se encontrar e rir um pouco. Assi nôs ficá sirvido. Está mais uma vez de parabéns o Miguel e a sua troupe, e já nos prometeu que para o ano há mais. Agredecemos a disponibilidade, e ficamos mais descansados.