domingo, 17 de agosto de 2014

Tudo o que você queria saber (mas não lhe foi dito)


É um disparate dizer que estamos em plena "silly season" quando se fala de Macau. Aqui "silly season" é todo o ano, e nem é bem tão "silly", é mais "cute", ou se quiserem "naive" - é Macau, ponto final. Se há uma coisa que Macau manteve foi a sua originalidade, as suas qualidades únicas que a distinguem do resto das cidades da China, da Ásia ou do mundo. Há quem tenha estado ontem na apresentação do programa político da candidatura de Chui Sai On à reeleição para o cargo de Chefe do Executivo e se diga "desapontado", e deixe escapar um desabafo do tipo "a montanha pariu um rato". O que é isso, "pangyao", descontraía-se, "man man", beba mais um copo de água da fonte do Lilau e cante "Macau sã assi", acompanhado com palmas. A única coisa que a montanha pariu foi o campus da Universidade, e quem esteve ontem na Nave Desportiva dos Jogos da Ásia Oriental achou tudo "normal". Queria o quê, foguetes e bailarico? Sei? Sei o quê? Porquê? Ah isso, ora porque é que não disse logo? Já acabou de beber a aguinha? Se calhar agora era melhor beber um chá. A falta de chá não se recomenda neste cantinho onde reina a harmonia. Então e o que foi que ficou por dizer ontem lá naquela Torre Eiffel ao pé do aeroporto, que muitos pensavam ir ouvir e no fim ficaram a perguntar: "então e o resto"?

Existia uma expectativa elevada em relação ao programa político de Chui Sai On, e o caso não é para menos. Daqui a menos de uma semana realiza-se a primeira parte do que pode ser uma tragédia em dois actos para o Executivo e restante séquito, com a realização do referendo civil, organizado por três associações do campo da pró-democracia. O segundo acto é apresentado no dia 30, antes da eleição para o Chefe do Executivo propriamente dita, os organizadores pretendem divulgar os resultados antes da Comissão Eleitoral nomeada para escolher o dirigente da RAEM para os próximos cinco anos. Isto tem sido uma telenovela das oito, daquelas boas, que guardam sempre uma cena que pode ser decisiva para o enredo interrompida à sexta-feira, deixando o espectador em "suspense" durante todo o fim-de-semana. O anúncio do dos planos de Chui Sai On para os próximos cinco anos - atendendo ao facto de que será reeleito com toda a certeza como candidato único - têm um revestimento de certeza, que em política é o "icing sugar" em cima do bolo que sem ele fica insonso e sem graça. Tudo o que o Chefe do Executivo transitório disser, escreve-se, isso é certo. Agora se vai cumprir ou não, essas são contas doutra mercearia. Só que dadas as circunstâncias, havia quem prevesse um espectáculo de magia, com Chui Sai On a tirar vários coelhos da cartola e cartas da manga, bem como escapar de um tanque cheio de água onde se encontra acorrentado e sem respirar, e andar na cordar bamba montado num monociclo segurando uma sombrinha na mão e levando um caniche sempre a ladrar às costas. Mas não, tudo normal. E porque havia de ser diferente?

Na prática esperava-se que o Chefe agora apenas candidato levasse a cabo uma operação de charme que não só acalmasse os seus elementos mais próximos, que se têm pautado por uma postura "gaffeuse", para ser simpático, e trouxesse de volta a confiança da população, demonstrando que afinal entre ele e os outros, mais vale o diabo que já conhecem. Aguardava-se que viesse finalmente apresentar soluções definitivas para os problemas mais urgentes como o trânsito, a habitação, os táxis ou a inflação, construir finalmente o novo hospital público, abrir creches para todos, até para os pais, se quisessem, anunciar as tão aguardadas reformas política e administrativa, em suma, fazer tudo o que ficou por fazer nos últimos cinco anos, e que antes já tinha sido necessário começar a deitar mãos à obra. Mas não, au contraire; não sou não anunciou nada disto como ainda reiterou a política de não interferência do Governo no mercado imobiliário, e veio dizer que as secretarias que o irão secundar nestes próximo cinco anos vão continuar a ser cinco, um número que ele "aprendeu através da experiência" ser o ideal. De positivo, se lhe podemos chamar assim, disse que a política da distribuição dos cheques inserida no plano de compensação pecuniária vai continuar, porque "é bem recebida pela população" - agora mais como paleativo do que outra coisa, e os mais "gulosos" que esperavam um "brinde extra" no fim do ano como demonstração de boas intenções ficaram a chuchar no dedo. Mesmo o conteúdo programa apresentado é mais do mesmo, "same same and not different": habitação pública, diversificação da economia, subsídios e mais subsídios que vão levando a mais inflação e depois mais subsídios, uso e abuso da palavra "talentos", ou seja, o mesmo nada. Qual é a diferença, desta vez é a valer? Haja quem tenha fé e acredite.

As circunstâncias que rodearam a apresentação do programa de Chui Sai On eram especiais, podendo-se mesmo falar de crise política - por muito menos do que isto, Edmund Ho deu início em 2007 ao tal plano de distribuição das receitas. Podem-se fazer muitas leituras desta opção do candidato em não fugir ao guião inicial, ou nenhuma. Na melhor das hipóteses separou os alhos dos bugalhos, mantendo a eleição num patamar e a questão do referendo na outra. Não quero acreditar que terá continuado a ignorar o problema, e que "seduzir" (para não dizer "comprar") a opinião pública não ia adiantar de nada; e de facto tudo indica que assim seja, pois os democratas já demostraram que fazem do referendo uma questão de princípio. No pior dos cenários, e Jason Chao deverá estar a interrogar-se a estas horas sobre a indiferença de Chui Sai On, há duas hipóteses. A menos má, e que na eventualidade de sair daqui alguma consequência, é que a China tenha manifestado o seu apoio incondicional ao Executivo, com ou sem referendo, e depois dele tirar-se-ão as devidas conclusões. O pior cenário será sem dúvida impedir a realização do referendo, e parece mais que evidente que a única forma de conseguir isso é através de sabotagem ou repressão. Caso a participação, ou a vontade participar seja elevada, poderemos ter a mãe de todas as crises em Macau, política, social, geral. O estado de sítio. Resta saber se a postura tranquila de Chui Sai On é "bluff", ou se tem um "straight flush" nas mãos.

A questão da reforma das secretarias, nomeadamente com a introdução de duas novas, passando de cinco para sete é entendida como uma inevitabilidade que tem sido constantemente adiada. Com esta hesitação que tem sido entendido por alguns como laxismo, o Executivo faz com que alguns observadores levem as mãos à cabeça, pois não dando autonomia própria a algumas pastas mais complexas e habitualmente criticadas pela sua demora ou ineficácia, dá um sinal de não saber bem o que fazer para melhorar o seu próprio desempenho. Mas isto é o superficial, e é claro que o Governo tem consciência de poderia melhorar caso desse esse passo, mas não é tanto uma questão do quê nem de como, mas de quem. Passo a explicar: as secretarias habitualmente indicadas como tendo necessidade de um responsável a tempo inteiro são a dos Assuntos Sociais e Cultura, e a da Administração e Justiça. A primeira tem como maior problema a área da Saúde, mas não será apenas por incompetência dos serviços ou da secretaria da tutela, pois não têm poderes mágicos para fazer aparecer como por encanto meios logísticos, equipamento e profissionais de qualidade para que todos os cidadãos tenham direito a cuidados de saúde gratuitos, ou perto disso, com eficiência e prontidão. Se quisermos atribuir culpas ao "lobby" do Hospital Kiang Wu e à visão empresarial da saúde pública, faz todo o sentido, mas isso não mudaria com uma secretaria autónoma e a tempo inteiro. E vejam só quem esperavam que fosse anunciar tal coisa, ó ironia das ironias. Os serviços sociais na vertente da assistência à velhice a aos cidadãos excluídos, à reintegração de marginais, toxicodependentes e afins sofre mais de um estigma social em relação a estes últimos, e quanto os primeiros os subsídios vão resolvendo, e não estamos assim tão mal. A cultura tem o valor que tem, nem toda a gente considera uma prioridade, o que é pena, mas para chegar lá é preciso resolver primeiro o resto. Ninguém tem vontade de ir ao teatro ou á ópera com febre ou dores de barriga. Mas isto não é razão para não separar as secretarias, nem que seja apenas por uma questão de operabilidade, mas o problema é a outra divisão: a administração e a justiça. Especialmente a justiça.

Reparem como nem faz sentido que duas tutelas tão distintas estejam debaixo da mesma alçada. A administração, com os SAFP como centro de operações, é uma extensão do próprio Executivo, a sua "caldeira a vapor", se quisermos. Do outro lado, o da justiça, está a produção legislativa, que tem igualmente uma interação com o poder executivo, mas tem contida nela um poder autónomo, o judicial, mormente os tribunais. A independência do poder judicial é vista em Macau com alguma ligeireza, pois diz-se em surdina e com algum humor que "os três poderes estão separados mas deitam-se um com o outro de vez em quando". O caso do braço legislativo do poder, a Assembleia Legislativa, é um caso tão flagrante que nunca pode ser levado a sério e tido como independente, mas já se deu o caso dos tribunais terem decidido contra o Executivo, e em alguns casos em situações delicadas. O ramo da justiça não procura o confronto com o Governo e quer como toda a gente que Macau viva em harmonia e prosperidade, só que caso a Justiça vá ficar debaixo da alçada de alguém que não é da confiança do Executivo, pode-se dar uma cisão, especialmente se esse alguém tiver fins políticos, o que num sistema como este em que o equilíbrio é garantido pelo sistema jurídico de matriz portuguesa, que impede certas veleidades a quem preferiria outra "receita" para a justiça. E não me importo de referir um exemplo, assaz comentado, quando o actual procurador da RAEM Ho Chio Meng sugeriu que o combate aos crimes de droga têm mais eficácia nos países onde se aplica a pena de morte. Mais tarde veio dizer que foi mal interpretado e que nunca afirmou ser a favor da pena capital, e eu acredito nele, mas também nunca se afirmou categoricamente contra, e mostrou ser pelo menos parcialmente "adepto". Como se vê, esta é uma questão muito sensível.

A responsável pela pasta da Administração e Justiça é desde o início da RAEM a secretária Florinda Chan, que vindo de uma formação administrativa e não sendo jurista, tem conseguido fazer o equilíbrio dos dois lados e uma gestão de egos que não tem sido fácil, mas obtendo no fim uma conexão entre os vértices do triângulo. Apesar de não terem sido 15 anos tranquilos, a secretária sai com o dever cumprido, pois é quase certo que será uma das alterações no IV Executivo da RAEM, juntamente com Cheang Kwok Wa e Francis Tam, mas se para estes dois Chui Sai On encontrará um substituto com mais ou menos facilidade, será complicado escolher alguém da mesma confiança que depositava em Florinda Chan. Se isto assim já é uma dor de cabeça, dividir as secretaria seria duas - ou mais, atendendo ao facto que a Justiça ficaria sem o "peso" da administração, que lhe vai diminuindo um pouco a marcha. O próprio admitiu a alguns meses que "é difícil encontrar alguém com experiência para este cargo", referindo-se ainda à secretaria da Administração e Justiça. Não se colocou então a questão da separação, mas já se dava a entender que não lhe agradava a ideia. Tudo bem, então e o que impede então o CE mexer na Saúde e deixar a Justiça como está? Não seria muito coerente mudar uma que está apenas assim-assim e deixar a outra a que se justificava a mudança, portanto o melhor é não mudar nada. Podia ser até que os Serviços de Saúde e o Instituto de Acção Social trabalhassem melhor respondendo a uma secretaria mais específica, mas por outro lado iamos ter uma carga de trabalhos.

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