quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Boicote? Não obrigado...é ilegal!


Dez dias. Começa a contagem descrescente para o referendo civil do dia 24, e a tensão começa a aumentar. Tensão com laivos de desespero, nervos à flor da pele, gente que não está de joelhos a implorar por misericórdia, mas pouco falta. Noites de sono perdidas, suores frios, transferências de capital para as Ilhas Virgens Britânicas, "o céu vai cair!", "o céu vai cair!", apregoa o pintainho; "protejam as vossas cabeças", diz ele, coitadinho. A sessão muito sui generis de ontem na AL, com Dominic Sio e Gabriel Tong a entrarem para a galeria dos condenados à forca, com o último a fazer aquilo que se chama em política uma "viragem de casaca", e dias depois de dizer que o referendo "não era ilegal, mas é lixado", vem dizer que "sim, sim, é ilegal, sempre foi", e qualquer outra coisa que tenham ouvido da boca dele "foi fora de contexto". O sentimento de desconforto pairava no ar, muita gente engolia em seco, menos Ng Kwok Cheong, que ostentava um sorriso que lhe dava a aperência de sapo, e do seu colega Au Kam San, com um beicinho à Tina Turner. Ah não esperem, acho que eles são mesmo assim. Esqueçam o que eu disse.

Quem também deu o seu contributo foi o sempre disponível Tsui Wai Kwan, que não se sabendo que papel desempenha no hemiciclo, é um pouco como a chuva: aparece nos dias negros. Figura séria que não é para levar a sério, Tsui reforçou a tese da ilegalidade do referendo. Quer dizer, mais ou menos isso; como se pode reforçar algo que nunca teve força? Deve ter aprendido isto durante a frequência do ensino secundário, que é o que consta da sua ficha de deputado na parte da Formação Académica e Profissional - não fica claro se o completou, contudo. O deputado nomeado pelo Chefe do Executivo desempenha vários cargos (daqueles em que não se mexe um tedo e ir lá ou não é o mesmo), entre eles o de presidente das "Associação dos Fretadores de Macau". Portanto ninguém melhor para fazer um "frete" destes, mesmo que caia em saco roto. Num tom paternalista, o tio Tsui avisou os meninos que os cidadãos "devem respeitar a lei" - qual, não disse - e por isso "boicotar o referendo". Oh, oh, oh. Senhor motorista, pode-me deixar descer faz favor? É que não me apetece ir para Loures e já vi que chegámos à Apelação.

Curioso como o senhor deputado, que cada vez que abre a boca é para dizer que "temos muita sorte", venha agora apelar ao bom senso dos cidadãos. É que no tempo da administração portuguesa ganhava-se cinco mil, agora ganha-se dez, "o dobro", e não chamemos para aqui o facto da habitação estar dez a quinze vezes mais cara, que não interessa para nada, e portanto deviamos era estar todos muito agradecidos - a ele, suponho. É que na falta de um argumento que caiba numa Assembleia Legislativa, onde como o nome indica, discute-se legislação, vem este chocho pedir batatinhas, e fazendo fé na tradução da imprensa portuguesa, num tom até relativamente intimidatório. Portanto as pessoas devem "ponderar racionalmente" boicotar este referendo, é isso? Primeiro, não sendo um referendo oficial e veiculativo, não há nada a boicotar porque dali nada vai sair de concreto, e segundo que conversa é essa de "respeitar a lei"? Pode-nos dar aí uma lei para podermos respeitar, que eu não sou maluco e não fico por aí a "respeitar" para as paredes? É que se o senhor ou alguém conseguisse explicar exactamente como é que participando de uma actividade a cobro da liberdade de expressão estaremos no "incumprimento da lei", éramos capazes de pensar no seu caso. Fosse qual razão fosse, por muito tenebrosa e assustadora, somos maiores e vacinados, e talvez procurássemos resolver juntos o problema. Agora com essa ladaínha do ilegal é que não, porque nos estão a fazer de parvos.

Mas é afinal suposto nós termos medo do quê? Tsui diz que o referendo "vai dividir as gentes de Macau"; não, não vai, ainda não vi aí ninguém ao estalo por causa do referendo nem sequer um debate aceso sobre o assunto. Hoje fiz o habitual "teste de choque" com os meus colegas, todos eles "oumunyan", de ambos os sexos e idades compreendidas entre os 30 e os 48 anos (ena, pareço um "estatístico", caramba!) e eis as reacções que obtive: "nunca ouvi falar", "ouvi qualquer coisa, sim, do que se trata?", e "ah isso não é dos democratas? eles estão sempre a fazer coisas dessas". Até a minha mulher confessou que não fosse por viver comigo, provavelmente nunca teria ouvido falar do tal "referendo". É que o jornal Ou Mun, "good dog", não dedica uma linha ao assunto, como V. Exas. devem saber muito bem, e não sinto qualquer ambiente pesado a não ser aí entre os senhores. De facto a realização do referendo pode vir a "decepcionar o Governo Central, que confia em Macau e sempre nos tem apoiado, e ainda colocar Macau numa situação de oposição extrema ao Governo Central”. Sempre NOS tem apoiado? Coloca quem no quê? Quem decepciona quem? Meu amigo, na hora de dividir o bolo, deixam-se os criados à porta, mas quando há um incêndio querem que eles acudam? Pois, parece que "já foste", ó pázinho.

Ainda a semana passada a Associação Geral das Mulheres de Macau realizou uma sessão de esclarecimento para os seus associados a apelar a quem não participem no referendo, e para o efeito até convidaram (leia-se contrataram) um professor da UMAC para "explicar" porquê. Eu acho que devia ser algum professor de horticultura ou de croché, e que os associados (ou neste caso associadas) da AGMM ao ouvir o janota dizer-lhes que iam "discutir a questão do referendo", perguntaram "a questão do quê???". Para quê este espectáculo todo, quando lhes podiam simplesmente mandar um SMS? E outra vez, o que tem o referendo de especial para se apelar ao boicote? Quem não quiser ir, nada lhe acontece, quem for - e será muito pouca gente, mas isso é o que menos interessa - não pode ser indiciado de crime algum. Será que não há ninguém que dê um murro na mesa e pergunte a esta gente o que pensa que está a fazer? É como se nos dissessem: "Estás a ver aquele gajo ali na esquina? É um traficante de droga dos mais malvados, e se comprares dele, morres!". Ai sim? Que grande porra, e porque é que ninguém vai lá prendê-lo, antes que faça estragos?

Para a ajudar à festa, a presidente da Comissão Eleitoral Para a Eleição do Chefe do Executivo, , Song Man Lei, veio supreendentemente anunciar que "é proibido divulgar resultados de sondagens durante a campanha para a eleição do chefe do Executivo". Uh? Sondagens do quê? Melhor, sondagens a quem e para que efeito, já que existe apenas um candidato que é eleito por um colégio de 400 elementos. Mas esperem, a partir de 1 de Setembro, já depois do anúncio dos resultados, podem ser divulgadas as sondagens todas que quiserem. A sério? Obrigado. E já agora podemos fazer o mesmo na "Macau Slot", e apostarmos nos jogos de futebol depois destes terem terminado? Acho que finalmente a minha sorte ia mudar. Song Man Lei justifica isto com a Lei Eleitoral, que proíbe a divulgação de sondagens ou persuadir um elemento do Colégio Eleitoral a divulgar a sua intenç0Òo de voto durante o período da campanha eleitoral - sim, sim, isso poderia melindrar os restantes candidatos, na eventualidade de existir algum. Acho esta medida óptima, pois estava a ficar preocupado que viesse para aí uma sondagem qualquer estragar esta animada campanha eleitoral, cheia de incidências espectaculares, com o debate político a fervilhar. Só uma pergunta: se isto está na Lei Eleitoral, para quê enunciá-la? Era para quem, o recado? Para os organizadores do referendo não será, com toda a certeza, pois como o nome indica é um "referendo", e não uma "sondagem".

Quem parece indiferente a todas estas tácticas de dissuasão são os organizadores do referendo, e Jason Chao não tem parado de chatear meio mundo, desde o IACM à própria CCEAC, correndo de tribunal para tribunal, qual assombração por cima da cabeça do Executivo e do seu séquito. Tanto esta conversa da ilegalidade do referendo, da proibição das sondagens, do boicote e sabe-se lá mais o que virá a seguir só demonstra duas coisas: pânico e desespero. Por fora os deputados e figuras próximas da nomenclatura parecem calmos, plácidos e serenos, mas em casa andam a subir pelos móveis, a arrancar os cabelos e a esconderem-se debaixo da cama. As associações que vão organizar esta "desfeita" no dia 24 com "bis" no dia 30 sabem que têm os trunfos todos na mão - nem precisam de divulgar o referendo, pois o Governo e os seus pachás encarregam-se disso para eles. O que eles já perceberam é que não interessa se vão votar mil, cem ou dez pessoas, ou não apareça ninguém: o facto do referendo se realizar é já por si um desastre. O que vão fazer quando chegar a hora? Espero bem que não pensem em prender ninguém ou adoptar qualquer outra medida coerciva - é que se estão com medo de irritar Pequim, isso seria mil vezes pior do que o referendo. Nem vale a pena organizar distrações, piqueniques, caças ao tesouro, bacanais e coisas tais, pois uma vez que os miúdos montem a barraca com uma urna lá dentro, kaputz, acabou-se a festa.

Não me sinto especialmente entusiasmado com isto do referendo, e não acredito em consequências de espécie alguma para Macau e para a sua população, e muito menos que a soberania relativa ou o segundo sistema estejam em perigo. Acenar com este cenário de horror serve que propósito, exactamente? Os democratas não se impressionaram e a opinião pública está-se nas tintas; foram vocês que sempre desencorajaram a participação civil nestas coisas "sujas" da política, lembram-se? Ofereceram-se para tomar conta dessas coisas "chatas" por eles, como verdadeiros heróis, sim senhor, palmas, e agora desamerdem-se. Não sei se todo este chinfrim é com a finalidade de virar a população contra os organizadores do referendo, mas isto é o que dá quando se pensa que se podem enganar as pessoas todas as vezes, que eles não percebem. Mesmo um idiota declarado fica aborrecido lhe estão sempre a chamar de idiota. Agora a batata quente está nas vossas mãos, e é suposto nós fazermos o quê? Ter pena?

Sabemos que isto da política, dos governos e não-sei-quê é uma grande esturcha, e que se calhar era melhor ficar em casa de papo para o ar, ser um cidadão comum e não precisar de andar por aí de carro preto em carro preto, de um gabinete para o outro, todo enfatiado no Verão e distribuir salamaleques por gente muito chata. Compreende-se que para recompensar o esforço e o tempo perdido seja legítimo que obtenham algum incentivo, mas espera-se também que façam pelo menos qualquer coisinha. Que Assembleia Legislativa é aquela, que reprova de peito feito leis para proteger os animais, as mulheres vítimas de violência doméstica, e agora até uma lei para a divulgação dos Tratados dos Direitos Humanos e Convenções da Organização Internacional do Trabalho, reconhecidos quase no mundo inteiro, e tudo em nome de caprichos, teimosias parvas e jogos de bastidores, e tudo fundamentado com argumentações da caca ou apenas "porque sim"? Pode ser que dêm muito jeito ao Executivo, apesar de terem supostamente um papel "fiscalizador" da sua acção, e não cúmplice, mas levam o outro poder à lama do embaraço e da vergonha. Com amigos desses, quem precisa de inimigos?

Nunca vi esta legislatura tão empenhada numa causa, ao contrário de outras que constituem problemas de fundo cuja resolução foi ficando eternamente adiada. Segundo hospital? É para amanhã. Trânsito? Logo se vê. Reforma jurídica e Administrativa? Isso é muito chato e é preciso ler muito. Habitação, inflação, qualidade de vida? Pois é, afinal isso era importante, mas o que se pode fazer agora em dez dias? Não dá nem para anunciar mais um cheque, e mesmo que fosse a malta agradecia muito mas o referendo ia para a frente na mesma. Agora é tarde para desdramatizar, para ignorar, para dizer que está tudo bem, não há problema. Genial seria ter atendido à proposta para debater isto do sufrágio universal, já que em Hong Kong o Executivo acabou por dar o braço a torcer, e mesmo assim aquilo anda por lá em permanente ebolição. O que vai fazer a China perante todas estas evidências? Não sei, nem é nada comigo. Sabem rezar? Não? Aprendam, que para isso nunca é tarde. Agora em relação a isso do boicote, se querem que vos diga, acho que vou recusar o vosso amável convite. É que não há nada sobre boicotes na Lei Básica nem na Constituição da R.P. China, e por isso dever ser ilegal. Sou eu que o digo, com base em absolutamente coisa nenhuma. Vêem como é fácil? E é chato, eu sei.

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