domingo, 17 de agosto de 2014

Com a rigidez de um cadáver


Foi um fim-de-semana agitado, emocionante, cheio e incidências e quente, o que deu para ficar por casa a escrever, e o blogue deu imenso trabalho. Assim, não por esquecimento mas antes para finalizar com chave de ouro, deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Boa semana de trabalho e obrigado pela preferência.

Na senda do artigo da semana passada sobre a areia que abunda na engrenagem administrativa desta RAEM da China, outra do Santo Nome de Deus e em ambas as faenas conhecida apenas por “Macau”, volto a falar deste estado actual de Calamina em que vivemos no território – em nome do alívio da comichão causada pelas alergias e pelo sarampo, estar acamado e acometido de uma rigidez cutânea que limita os movimentos e expressão parece ser um mal menor. Aproveito também o facto de grande parte da nossa comunidade lusófona ter ido “a banhos” neste mês de Agosto para cometer um ou outro desabafo inconsequente, como se só as paredes confessasse, ou na versão mais coloquial, um sermão as peixes, com a devida vénia ao Pe. António Vieira, a cuja retórica nem ouso fazer comparações. Melhor, adaptemos a situação à realidade local: tal como o deputado Fong Chi Keong, esse pândego, vou por uns momentos ficar a “conversar com o cigarro”.

Já tinha feito menção na última quinta-feira ao “dolce far niente” que caracterizava os tempos da administração portuguesa, o pré-RAEM, antes de 1999. É preciso não confundir isto com laxismo ou incompetência, como se Macau fosse o campo e nós os burros que passavam o dia a comer palha enquanto se enxotavam as moscas com a cauda. O que existia – mesmo que em doses acima do recomendável – era uma descontração, um relaxamento próprio de um local que não sendo bem o campo, servia de santuário para aqueles que procuravam exílio do frenesim das grandes cidades, do “stress” compassado pelos ponteiros do relógio, da hora para almoçar de pé, da corrida para o transporte, que perdido podia significar a diferença entre a vida e a morte. Era um tempo em que olhar para cima em Macau era ver o céu azul, e ao lado uma criança a sorrir, e à frente um caminho a percorrer, sem ninguém a olhar para o “smartphone” e esbarrar connosco, limitando-se a desviar a atenção do ecrã apenas por um segundo, e em vez de nos pedir desculpa verifica apenas se somos alguém de carne e osso que possa constar da lista de “conhecidos” do mundo virtual.

Chegaram então os novos senhorios, vai para 15 anos. Programados para agradar, fazer o ar mais inofensivo possível, e cumprir as parangonas do tão apregoado “segundo sistema”. No início foram a Singapura, um território de dimensão pouco maior que a de Macau, uma micro-economia idêntica, e um exemplo na área da prestação de serviços. Foram “aprender”, dizem. Resta saber se foi para aprender como se faz, ou como não se faz. Basta apanhar um táxi em Singapura e não apanhar um táxi em Macau para perceber a diferença. Pegaram nos velhos e inofensivos vícios do passado e adaptaram-nos ao código palaciano, dividiram para poder reinar, e o seu séquito – cambada de patetas sem carácter – cairam na esparrela. Instituiu-se o sistema do clientelismo, do seguidismo, da obediência cega e incondicional, da desconfiança, da retaliação, da bajulação e do mérito duvidoso acicatado por um sistema de avaliação baseado em critérios puramente pessoais, limitados pelo politicamente correcto, e terreno fértil para a injustiça e para a inveja.

Fica tudo feito? Sim, fica, quando fica. Senão “vá falar com o meu colega”, ou “não é neste andar, é no outro de cima”, “enganou-se, é no departamento tal…lá disseram-lhe que era aqui? Mas olhe que o engaram: é mesmo lá”, ou “o chefe manda dizer que não está”. Pelo menos cumprem a Lei, não? Às vezes. Outras vezes respondem: “o meu chefe não é Lei (李, um apelido chinês), é Leong (梁,outro apelido)”. A responsabilização não existe, pois ninguém assume nada, e faz apenas o que lhe mandam, sempre em mente que trabalhar em Macau é uma encruzilhada onde existem apenas duas saídas dignas: administração ou casinos. Como se cumprem as directivas? Seguem o código? “O ofício”, respondem. Qual ofício. “Aquele… que circulou por aí no outro dia… não me lembro bem, mas lá dizia para fazer assim”. E lá vão passando estes ensinamentos de minhoca para lesma, de lesma para bicho-da-seda, e por aí fora na escala dos invertebrados. Se o povo diz que “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”, aqui tudo o que conta são as aparências, e César não confiava numa mulher destas nem para perguntar as horas.

Cumpre-se o longo caminho que mais parece uma via sacra, onde já cansa o prolongado estertor do jovem moribundo que lentamente definha. E não ficamos por aqui em termos de necrologia; a perfeição do sistema será atingida quando se cumprirem as directivas sempre a olhar a frente, sem distrações, com a rigidez de um cadáver, preservado em formol e besuntado com carradas de tinta, conferindo-lhe um sopro de vida, apenas de imitação, a fazer de conta. As auroras de ontem continuam radiosas, quem sabe ainda mais que antes, mas o seu abraço não é o mesmo, doce e fraternal. O melhor mesmo é ver se ficou lá um punhal espetado nas costas.

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