domingo, 17 de março de 2013

Os pastéis de Zink e a morcela de RAP


Termina hoje o Festival Rota das Letras, que trouxe até Macau alguma da fina flor da literatura da Lusofonia. Uma semana especial, em que se falou de livros, de escrita, de poesia, de tudo o que faz bem à alma. Desconheço o impacto que este encontro teve na população, nomeadamente a de etnia chinesa, mas espero que pelo menos tenha tido algum. Que tenha pelo menos despertado a curiosidade de alguns. Macau é infelizmente uma cidade onde se lê muito pouco, onde a falta de cultura geral é gritante, e o sistema de educação fica muitos furos abaixo do desejável. Não vou insistir no cenário de “deserto cultural”, que mais uma vez o meu colega e amigo José Rocha Dinis abordou a propósito deste festival. O director do JTM insiste que é a falta de motivos de interesse cultural na RAEM é “uma falsa questão”, mas eu discordo; não é a realização de um evento, mesmo que desta monta, ou uma ou outra iniciativa esporádica que vão mudar seja o que for. Temos uma cidade de gente superficial e materialista, e entre gastar alguns milhares de patacas na compra do último modelo do iPhone ou algumas centenas em dois ou três bons livros, opta-se normalmente pela primeira. É salutar que entre as novas gerações já se denotem alguns progressos, e que exista alguma curiosidade pela literatura, pelos clássicos ou pelos autores estrangeiros, mas há ainda muito trabalho pela frente no sentido de mudar a mentalidade vigente de que “os livros não enchem a barriga a ninguém”. Mas adiante.

Tive pena que à última da hora Francisco José Viegas não se pudesse juntar a esta festa das letras, mas terá os seus motivos. Certamente que seria instado a comentar as recentes afirmações que fez a propósito da obrigatoriedade do pedido de factura em Portugal – a malta aqui adora uma boa polémica. Foi uma baixa de vulto. As presenças mais mediáticas foram na minha humilde opinião a do escritor Rui Zink e do humorista Ricardo Araújo Pereira (RAP), que justificaram em pleno o estatuto de cabeças de cartaz. Com todo o respeito pelos restantes autores que abrilhantaram esta Rota das Letras, era em Zink e em RAP que se centravam as maiores expectativas. Eram as grandes estrelas, o Messi e o Ronaldo do certame, se me permite a analogia. Zink é escritor, tradutor e professor universitário, um homem bastante culto e ao mesmo tempo descontraído, que dá imenso gosto ouvir. RAP é mais conhecido pelo seu trabalho no quarteto humorístico de maior sucesso na última década em Portugal, os Gato Fedorento, e para mim foi uma surpresa. Não estava dentro das minhas expectativas que fosse convidado, e para mais que viesse até cá, tão longe, ele que de certeza tem uma agenda preenchidíssima. Mas ainda bem que veio. Se é surpresa, é bastante agradável. Fiquei com curiosidade em saber o que pensaram Zink e RAP sobre Macau, como bons observadores que são, frontais e directos, sempre com uma inclinação para o discurso humorístico que serve para aligeirar saudavelmente qualquer assunto, por mais sério que seja.

Gostei de ouvir Zink, sobre a impressão com que ficou do território. A sua reacção é típica de quem chega e fica por aqui alguns dias. Não seria de esperar que ficasse completemante esclarecido sobre a realidade de Macau, mas pelo menos deu a entender que “captou” algumas das vibrações. Rui Zink faz-me sempre sorrir, e não pude evitar uma risada quando falou com Jorge Silva no Telejornal de sexta sobre a versão local dos pastéis de nata, as tais “portugueses egg tarts”. É de facto uma das curiosidades mais interessantes para um turista português, que este parente distante dos pastéis de Belém tenha no território uma grande aceitação, apesar da maior parte dos portugueses não lhe reconhecer as mesmas qualidades do original. Zink achou graça à interpretação macaense dos pastéis de nata, e sugeriu a Jorge Silva uma parceria (“agora que ninguém nos está a ver”, ah ah) na sua comercialização em Portugal. É lógico que Rui Zink estaria a desdramatizar o que alguns podem considerar um “defeito”, mas para nós que temos saudades dos nossos pastéis de nata é mais que isso: é um drama! As “egg tarts” de Macau seriam um fracasso em Portugal da mesma forma que os Pastéis de Belém originais seriam (e são, foram feitas algumas tentativas) um fracasso em Macau. É tudo uma questão de gosto, que neste particular difere muito entre as duas culturas que fazem parte da génese de Macau. Aliás já abordei o tema da pastelaria e das diferenças entre o gosto ocidental e local neste post.

Quanto a RAP, tenho pena de não ter visto mais dele, mas surpreendeu-me pela positiva em alguns aspectos. A sua bagagem cultural é um dos aspectos que mais se destaca, mas aqui a minha surpresa deve-se a alguma falta de atenção da minha parte, pois afinal RAP é licenciado em Comunicação Social, tendo optado antes pela escrita humorística – em boa hora, RAP é um excelente humorista, e não o imagino como jornalista “sério”. As suas primeiras impressões sobre Macau coincidem em parte com as minhas, se bem que com uma distância de vinte anos. É normal que alguém que chegue pela primeira vez a um território que esteve sob administração portuguesa durante cinco séculos espere encontrar mais pontos em comuns com Portugal. Eu próprio pensava antes de aqui chegar que a maioria da população falaria português. A minha ingenuidade desculpa-se mais facilmente pelo facto da minha chegada ter-se dado em 1993, quando Macau era ainda parte do antigo império. Congratulo-me que RAP tenha mantido uma posição sóbria e não tivesse optado pela “piada fácil” que infelizmente ainda colhe entre tantos humoristas e não só, que olham para os chineses de forma redutora, como “os gajos das lojas e dos restaurantes”. Se tenho algo a apontar a RAP (além do seu benfiquismo) é a sua excessiva humildade, que faz com que se repita “ad nauseum”. Diz que “é um palerma”, um infantilóide, que deve tudo mais ao acaso que ao talento, enfim, insiste nesta espécie de auto-crítica e com isto aproveita para fazer umas piadas. Acho que a intenção é mesmo essa.

RAP disse que “não esperava encontrar morcela no chop suey”, em jeito de graça. Ora, aqui nem temos assim tanto “chop suey”, mas temos morcela à farta. Quem sabe se o RAP, e já agora o Rui Zink, se tivessem demorado um pouco mais por estas paragens teriam a oportunidade de provar o “ma ka iao chao fan”, o arroz de bacalhau, ou a “galinha à portuguesa”, que apesar do nome, é um prato local desconhecido em Portugal. Existem detalhes deliciosos e pistas da convivência entre a civilização chinesa e portuguesa no território que não se detectam a não ser com uma visita mais demorada. Há mesmo quem viva aqui há anos e desconheça algumas das curiosidades que tornam Macau tão especial; existe uma diferença entre viver Macau e viver EM Macau. Só no primeiro caso dá para que se tenha consciência do contributo que cinco séculos de presença portuguesa deram para a matriz do território. Talvez seja presunçoso esperar que o Rui Zink e o RAP leiam estas linhas, mas se por alguma coincidência aqui chegarem, convido-os a regressar a Macau, desta vez apenas como visitantes, e que explorem melhor os recantos da cidade. Não é bem um convite, é mais uma sugestão.

Tivemos ainda um “finale” musical, com o fadista Camané e os Dead Combo, ambos de Portugal, uma espécie de cereja no topo deste bolo cultural. Foi uma semana diferente, portanto, bem passada, e era bom que outras iniciativas desta natureza fossem mais frequentes. Além do aspecto da Lusofonia, que nos diz respeito, tivemos literatura, poesia e arte chinesa, e já agora gostava que em jeito de rescaldo se fizesse um balanço da adesão dos residentes locais, e se há necessidade de fazer mais e melhor. Espero que a iniciativa se repita, e que o Festival Rota das Letras em Macau se torne num evento apetecível para autores do universo da língua portuguesa e não só. E já agora, quem é que eu gostava que viesse até cá no próximo ano? Que tal Alice Vieira, Miguel Sousa Tavares, Mia Couto e Miguel Esteves Cardoso, por exemplo? Com o calibre dos autores que tivemos este ano, não seria de todo impensável. O céu é o limite.

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