Quando deixei a santa terrinha e fui para Lisboa, era ainda um catraio a cheirar a leite, aprendi uma lição muito importante: como viver sozinho. Aprender a sobreviver é como uma vacina, quanto mais cedo se toma melhor.
Vivi primeiro na casa dos tios, em Almada, mas isto de ser um pequeno adulto a viver na casa de outros mais velhos é complicado, para mais que os meus primos já eram todos emancipados. Mudei-me então para uma casinha ali para os lados de Arroios, pertença de uns amigos do pai emigrados na Alemanha. Não era grande coisa, mas chegava e sobrava para mim.
Em pouco mais de um ano trabalhei em três sítios diferentes, qualquer coisa que desse para pagar os estudos, que devido à falta de tempo, andavam muito mal, sinceramente. A maior lição que tirei de tudo isto foi a economia doméstica. Ia ao supermercado duas ou três vezes por semana, à Praça no Sábado de manhã, e nunca cometia excessos. Como não sou um grande adepto das batatas fritas, acompanhava sempre as refeições com massa, que sempre dá para encher mais a barriga.
Com a variadade de fresquíssimos legumes que se podiam encontrar no mercado perto de casa, havia sempre salada. Quando estava inspirado fazia uma sopa, que às vezes eram o único sustento durante dois ou três dias. Sobrava sempre um dinheirinho para as saídas ao Sábado à noite, ou para o cinema ao Domingo, desde que não abusasse do uso do táxi. Lia os jornais no trabalho (quando dava), e durante um ano só voltei a casa em Agosto e no Natal.
Depois surgiu Macau, e como tudo mudou. Mas olhando a despesas, não pensei duas vezes; o que vinha ganhar a Macau era o triplo do que ganhava em Portugal, e sempre me fascinaram as mudanças de ares. Depois de usufruír da simpatia do casal que me acolheu à chegada ao Oriente durante dois meses, não tardou que o passarinho quisesse novamente bater as asas e encontrar um ninho. Só que aqui a adaptação foi bastante mais difícil.
Estávamos no ano de 1992, e a lista de compras era sempre muito limitada. Os vegetais não pareciam assim tão viçosos e frescos, a barreira da língua impedia uma incursão regular pelos mercados, e habituei-me a comprar comida congelada. Ainda me lembro duma vez que passei um dia inteiro à procura de bolachas Maria por toda a parte, para fazer um bolo de bolacha.
Depois descobri este Tin Une (na imagem), através de um amigo, e diz que era ali que a comunidade portuguesa comprava as necessidades básicas. De facto, ali havia (e ainda há) bacalhau, latas de grão e feijão, farinha Maizena, chouriço, mixórdia de cevada Pensal, polpa de tomate, latas de azeite que diziam “Azeite” e garrafões de vinho tinto que diziam “Vinho”.
Tão simples quanto isso. Fiquei encantado. Parecia uma daquelas mercearias portuguesas dos anos 50 onde se vendiam os cereais ao litro, dentro de vasilhas altas, com os enchidos pendurados no tecto e as contas ainda eram feitas em papel com o lápis atrás da orelha. Tempos houve em que uma lata de sardinhas Minerva era um verdadeiro pitéu ao alcance de poucos.
Quem procurasse por becos e vielas conseguia por vezes encontrar surpresas agradáveis. Havia uma mercearia na Areia Preta que vendia Moscatel de Setúbal, em garrafas de aspecto suspeito, mas de sabor imaculado. Uma padaria da Rua da Barca fazia sair às 6 da manhã uns pães de leite que nada ficavam a dever aos de Portugal. Às vezes lá aparecia um padeiro, pasteleiro ou merceeiro com imaginação que aprendia com os seus ex-patrões portugueses ou ainda mantinha algum contacto na pátria lusitana.
O que sempre achei uma roubalheira foi o café, a nossa bica, ao dobro e às vezes ao triplo do preço e de qualidade muito inferior ao que se bebia em Portugal. Mas falando de vícios, o que compensava era o preço dos cigarros, baratíssimos, quase dados. Comecei a fumar muito mais em Macau, onde um maço custava o equivalente a 120 escudos, já em 1995.
Depois apareceu o Bolo de Arroz, a pastelaria. Devem estar lembrados que o primeiro foi ali mesmo no meio do Largo do Senado, onde fica hoje o Vong Chi Kei, mas rapidamente mudou-se para a Travessa de S. Domingos. Os mais simpáticos elogiaram os esforço empresarial que visava aguçar o dente açucarado dos nossos expatriados e dar a conhecer à comunidade local o melhor que se fazia da doçaria portuguesa, e chegavam a comparar os bolos do BDA aos de Portugal.
Quer dizer, para mim que ainda limpava da camisa as migalhas dos pastéis de massa tenra da Pastelaria Nené, na Rua Augusta, onde comia todas as manhãs o pequeno-almoço, sabia que não era bem assim. Compreende-se e aceita-se, afinal é o problema dos ovos, da farinha (o pão em Portugal é imbatível), do leite, da manteiga, enfim, torna-se difícil fazer um queque ou um caracol igual ao da Pastelaria Suíça, por exemplo.
Gostei do esforço heróico com que o BDA começou a produzir bolo rei no Natal de 1993. Aquilo é que foi ver os nossos compatriotas, ávidos de um pedaço de saudade, mesmo que não gostassem do bolo propriamente dito (conheço pouca gente que realmente gosta). Havia que lhes tirar o chapéu por conseguirem produzir o galão, a meia-de-leite, o capuccino, os rissóis, enfim, mais com o intuito de nos aquecer o coração do que atingir a perfeição.
Depois do aparecimento do aeroporto ficámos um bocadinho mais perto, com os tais vôos da TAP, que nos traziam um pouco de tudo todas as semanas. Ali no antigo Park’n’Shop da Av. Sidónio Pais havia um pequeno negócio de um rapaz de cabelo encaracolado e bigode, cujo nome agora me escapa, que vendia jornais, revistas e até livros de banda desenhada com apenas alguns dias de atraso. Antes a alternativa era ler na Livraria Portuguesa O Expresso ou A Bola do mês anterior.
Isto tudo, é preciso não esquecer, antes do evento da Internet. Depois tornou-se tudo mais fácil, claro, apenas à distância de um clique. Confesso que tenho algumas saudades desse tempo. Em que a informação era muito mais difícil de obter, e prezávamos qualquer livrinho ou qualquer jornal como se fosse um amigo distante cheio de novidades para nos contar. Hoje pode-se fazer o download de dezenas de discos e centenas de músicas, quando antes vinhamos carregados de CD’s da Tower Records de Hong Kong, ou que vinham de Portugal traziam os últimos sucessos da cena pop/rock nacional.
Hoje a caça não sabe tão bem porque passamos da flóber do avô à implacável semi-automática. Hoje se me der na real gana posso entrar pelo supermercado Gourmet adentro e levar umas daquelas batatinhas rosadas, perfeitas para fritar (com o senão de custarem umas cem lecas o quilo), ou comprar meia bola de queijo Limiano em vez de me contentar com os quadrimétricos da Kraft, ou uma caixa de camarões da Pescanova, uns lombinhos de tamboril, sapateira, Skip máquina, chá Li-Cungo, farinha Branca de Neve, óleo Fula, enfim, não falta nada.
Quer dizer, faz falta muita coisa, e a preços convidativos. Sabem quanto custa uma couve-lombarda? Um quilo de bacalhau da Noruega? Uma alheira de Mirandela? Um queijo de azeitão? Custa o mesmo que em Portugal, mais o preço do bilhete do avião que traz essas iguarias.
No outro dia deparei-me com as bolachas Belgas da minha infância (Belgas Belgas, deli-ciosas), chocolates Regina (fortificam a vagina). Só faltavam mesmo as Bombocas. E as batatas Pala-Pala. E os Mon-Cheris cheinhos de licor, ao contrário daqueles ressequidos que por aí andam. E, e, e…
A vontade de importar produtos portugueses, muitos e bons, não passa apenas pelas FIM's ou pelo tal centro de produtos portugueses de Zhuhai. Passa pela vontade dos senhores empresários, e dos comerciantes locais, claro. Os produtos portugueses que temos são de qualidade reconhecida pelos consumidores macaenses, e certamente que mesmo os mais cépticos não se importavam de expandir os seus horizontes.
Quer dizer, temos aqui coisas muito boas a preços acessíveis (Sumol, Compal, Azeitonas, vinho), a preços mais ou menos acessíveis (queijos, enchidos), ou a preços escandalosos (aquele presunto da Pata Negra por exemplo) e outros sofríveis (Ferber, Vieira de Castro, eles que me desculpem), mas todos com relativa boa saída.
Basta olhar para o nosso produto nacional por excelência, o bacalhau. Até dá para inventar pratos locais com o fiel amigo (arroz de bacalhau). Já alguém ouviu falar da popularidade do bacalhau na Tailândia, nas Filipinas, na Índia ou no Japão? Existe caril de bacalhau? Ou sashimi de bacalhau? Ah, bom.
E mesmo os filipinos, reparem como vão conseguindo impor a sua gastronomia e importar os seus produtos a uma velocidade vertiginosa. E não me falem de distâncias, de logística ou de mercado. O segredo do sucesso passa, neste caso, apenas pela vontade de investir num território onde temos uma história tão antiga, e continuamos a reafirmar o nosso interesse. Ou sim, ou sopas.