A propósito da lamentável morte da directora dos Serviços de Alfândega, e ainda com o caso do funcionário do CCAC que cometeu suicídio há duas semanas, e de que sabe muito menos, ouvi algumas referências a "pressões no seio da administração", e que se podem interpretar como extensivas a todos os quadros, desde os de maior responsabilidade, até aos médios e inferiores. Sendo eu próprio um desses quadros, gostaria de dar a uma pequena achega quanto a essa questão da "pressão", e o que vou dizer não é nada que toda a gente já não saiba. Talvez a ideia generalizada seja de que quanto maior a responsabilidade do cargo em questão, mais sujeito se está a pressões, mas permitam que vos diga, "vero, ma non troppo".
Começando por cima, e com a directora dos SA em mente, temos que ter em conta que ao nem todos os titulares de cargos públicos são funcionários públicos, como no seu caso. E falo por exemplo dos empresários e alguns profissionais que exercem cargos políticos para os quais foram eleitos ou nomeados - o que conta antes de mais nada é o património do indivíduo em questão, que não passa qualquer método de provimento e estágio, não desconta para a segurança social, e não está abrangido pelo Regime Jurídico dos Funcionários Públicos. Posto isto, falar de "pressão" do prisma da tomada de decisões é subjectivo - cada caso é um caso, e no caso dos quadros superiores, é difícil aplicar a mesma bitola dos médios ou inferiores. Isto porque continua permanentemente adiado o regime da responsabilização dos titulares do altos cargos públicos, o que normalmente implica que essa responsabilização se faça no sentido descendente da pirâmide hierárquica. Esta realidade não se detecta a olho nu, nem "passando por lá", e no caso dos portugueses fica mais difícil, ora por diferenças linguísticas, mas sobretudo culturais.
Com excepção dos profissionais da saúde e as forças de segurança no terreno, não se está ali a lidar com vidas humanas nem se corre risco de vida, e qualquer erro pode ser facilmente rectificado. O problema é o "medo de errar", de que já falei em detalhe aqui e aqui, nestes dois artigos, com destaque para o segundo, onde o deputado Mak Soi Kun defende que um agente público que comete actos ilícitos é melhor do que um que não faz nada, porque pelo menos "faz alguma coisa". Ah? Boa, adiante. Este "medo de errar" funciona como uma espécie de "desempate nas grandes penalidades" na hora da avaliação do desempenho, ou mesmo de uma promoção, pois como praticamente todas as funções que não requerem especialização ou formação técnica para se desempenharem, podem ser ensinadas a qualquer adulto ciente e sóbrio, e a selecção dos melhores faz-se usando o critério de quem erra menos, ou não erra de todo. Ao contrário de outras "escolas" de Administração Pública, onde o erro não-grave pode facilmente ser compensado com méritos, aqui o erro "marca", e do medo de cometer uma falta, passa-se ao pavor, e daí à inércia é um salto, e a iniciativa própria é encarada como "um salto no escuro" - fazer o que vai para lá das próprias competências, mesmo que a situação o proporcione ou exija, é ficar exposto ao erro. E como é que se chega ao ponto de se "rebentar um fusível", ao ponto de cometer um acto de desespero?
Existem dois tipos de funcionários na Administração, quem sabe comuns a todas as administrações, mas aqui com características distintas, produtos da cultura local e regional: os que saem de casa, vão trabalhar, e no fim do dia voltam a casa, e os que saem do trabalho, vão para casa, e no dia seguinte voltam ao trabalho. Entendem esta diferença? O que estou a tentar dizer é que há pessoas que levam isto mais a sério que outras, e o problema é novamente a tendência para extremar os conceitos: quem olha para o emprego como um mero ganha-pão que lhe permite VIVER, que é o que lhe interessa, e é o que faz fora das horas de serviço, tem a tendência para ser ostracizado pelos outros, que estão constantemente em competição, num ambiente que se pode classificar de "intriga palaciana". Como é apanágio dos "palácios" da antiga China imperial, nestes vigora uma monarquia absolutista, e não fosse a História fértil em casos de eunucos que traem o rei e tomam eles o trono, existe um distanciamento entre as hierarquias, que se acentua entre o meio e o topo. Não é de todo posto de parte o período dos cinco mil anos de "aprendizagem" que levou à fundação da R.P. China, pelo que convém minar de base todos e quaisquer movimentos do tipo "união sindical", e daí que a estratégia seja "dividir para poder reinar". É fácil, basta demonstrar preferência por um funcionário qualquer, por nenhuma razão especial, e os restantes comportam-se como gatos fechados no mesmo saco.
Dos dois tipos de funcionários que referi no parágrafo anterior, os que "trabalham para viver" procuram um equilíbrio entre aquilo que é o seu dever, o cumprimento das suas funções, e o resto, que não lhe interessa, que é um místico de política, transtorno pré-menstrual, ausência de um "par deles" e falta de macho/fêmea - e aqui implica-se uma ambiguidade quanto ao género, de modo a acomodar a orientação LGBT (é preciso não esquecer os eunucos). Ignorar o meio em redor complicado, pois são comuns as situações em que se requer uma tomada de posição, e por isso, e agora em termos leigos, é quase impossível um gajo não ter que se chatear, e mandar mandar alguém para o Carrillo. Contudo esse é considerado um sinal de fraqueza, pois para se desmarcar da fauna palaciana e dos seus maquiavélicos enredos é necessário adoptar uma postura anti-social, ou revelar algum tipo de psicose. No fim vale a pena, pois a vida no palácio não é para o fracos de coração.
Quanto aos segundos, os tais que julgam que a cidade pára no dia em que eles faltam ao serviço, porque não há mais ninguém para pôr o carimbo nos ofícios, existem vários subgrupos, e desde a transição a maioria dos que entra são os chamados "sobreviventes", os "sherpas" da montanha da Administração, que não sendo necessariamente gente pérfida e viperina que gosta de deixar a sua faca nas costas alheias, acha isso "normal", e move-se com à vontade em qualquer ambiente, seja ele de paz, ou de estado de sítio. O problema de alguns prende-se com o facto de não ter nada melhor que fazer do que trabalhar, e quando o seu lugar é no topo da pirâmide, ou perto dele (aí tem tendência para o servilismo incondicional, vulgo "espinha maleável") tudo bem, mas se está no meio, passa as passas do Algarve. Se estiver no fundo e mesmo assim achar que é mandarim, não demora muito até que lhe baixem a crista, e se insistir, então só pode ser parvinho. Estas pessoas vão trabalhar com um sorriso de plástico nos lábios, nunca dando parte fraca, mas por dentro fritam mais que a massa das farturas em óleo a ferver. Vão para casa a pensar no que vão fazer ou dizer no dia seguinte, e se fica um assunto pendente de um dia para o outro não dormem descansados, e são os primeiros a chegar no dia seguinte.
Este último grupo é o tal que se pode falar em "pressão", mas é uma pressão derivada da sua personalidade frívola combinada com os vícios do sistema. Apesar de recentemente ter aumentado o número de vínculos precários - uma tendência que tem como fim aumentar a produtividade e facilitar o movimento do contingente, mas que tem sido usado muitas vezes como instrumento de chantagem - ainda existem muitos funcionários do quadro que se resignam e não protestam com receio de represálias. Esta é a parte que difícil de entender para nós, portugueses: os métodos de dissuasão e outros que visam "pressionar" um subordinado não têm tradução na nossa cultura. Pelo menos só pode ser esta a explicação para os ataques de pânico a que chego a assistir por coisas de nada, e que às vezes são apenas produto de uma mente paranóica, que vê em cada gesto, olhar ou meias-palavras uma teoria da conspiração cujo objectivo é deixá-lo na rua a pedir esmola, enquanto os transeuntes apontam para ele e riem na sua cara.
Na sequência deste "terror das nove às cinco", não foi uma, nem duas, nem dez vezes que escutei das bocas desta gente que "o suicídio apresenta-se como uma saída" - outra vez, isto é outra forma de encarar a vida que não a minha, e possivelmente nem a do leitor, e não vale a pena tentar perceber. Quando oiço desabafos deste calibre, a minha reacção é dizer ao ou à camarada em questão que talvez ande a precisar de férias, ou de arranjar um/a namorado/a, ou que se calhar um cão pode até fazer companhia, mas não diz "sim, tens toda a razão" quando se desata a desbobinar razões porque o colega A é um sacana, ou a B uma cabra. Em todo o caso, pedir a demissão, férias, ou em alternativa uma licença de curta ou longa duração, depende da "pancada", são tudo alternativas mais em conta do que cometer suicídio. Espalmado no meio do chão ou com a mioleira a escorrer na parede já não dá para conferir a cara de espanto do "inimigo", caso o velhaco que lhe anda a pisar os calos ficasse depois com remorsos, mas "surprise, surprise", não fica. Nem um uizinho para a mostra, quanto mais.
Portanto pode-se concluir que quando se fala de "pressão" na administração, daria para fazer uma tese de mestrado com umas 600 páginas, com umas que teriam interesse do ponto de vista da análise da Administração Pública como ciência, e a maior parte serviriam para guião de mais uma daquelas telenovelas das 8, num dos canais chineses de Hong Kong. No caso dos altos dirigentes, como é exemplo a malograda directora dos SA, que só tem que responder ao CE, e eventualmente ao Governo Central (acho que nem isso...), não terá sido pelo desgaste de ter os invejosos a fazerem-lhe "olho gordo", ou de alguém a passar-lhe o trabalho e a conduta por uma peneira, de modo a apanhar-lhe os erros e as faltas. Sem me referir a esse caso particular, o que deixei aqui foi uma análise do geral, e mesmo quem está de fora do círculo da Administração é capaz de identificar alguns pontos em comum com outras valências, e se não é esse o caso, não deverá estar agora a agora: "o Leocardo está a alucinar". São tudo comportamentos do Homem para o Homem, e quando o que está jogo é o poder, o estatuto ou a dignidade, e para lá disso não existe mais nada, Macau é um campo minado - é a cultura chinesa apertada num território onde existem 30 e tal casinos e nem um único parque de diversões.
Finalmente, e depois de toda esta prosa, poderá haver quem tenha lido de alto e baixo e esteja a pensar "what's the point", ou se me estou a queixar de alguma coisa. Não, e mais uma vez isso seria tão previsível, tão característico da cartilha local: ou é tudo uma maravilha, e haja faringe para engolir certas coisas, ou "quem está mal, muda-se", ou em alternativa atira-se do terraço, tanto faz. É por isto que as coisas estão como estão; os "yes-man" vão dizendo que a bosta de vaca é mousse de chocolate, ou que o patrão careca e vesgo é parecido com o Brad Pitt, e nenhuma crítica é entendida como "construtiva" - e isto eu entendo, pois até hoje não vi nenhuma abordagem diplomática aos defeitos de seja do que for em Macau, o que na maioria dos casos só acontece quando a situação extravasa todos os limites. Pode ser que paulatinamente se vá avançando para a tal reforma administrativa, mas mudem o que mudarem, o mais difícil é mudar as mentalidades. Afinal sempre são cinco mal anos desde que foi plantada, e já nem sabe onde acaba a raiz do problema.
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