Nós, os portugueses, conseguimos ser um povo muito, mas mesmo muito burro. Sim, nós portugueses, onde eu próprio me incluo, e no caso do leitor ser também português, é burro também. Deixe lá, que eu também sou. É que ainda por cima uma das coisas que me leva a dizer que "os portugueses são burros" é o facto de muitos portugueses fazerem esta afirmação como se eles próprios se tivessem demitido da Portugalidade. E digo "afirmação" e não "constatação", pois nesse caso fica reiterado que os portugueses são burros - demorou assim tanto tempo a "constatar"? Quer eu próprio, quer o leitor ou outro português qualquer podem-se achar os maiores, o ovo mais fresco da caixa, o pintelho mais viçoso da púbis, e não é certamente por culpa nossa que os portugueses são burros: este "os portugueses" implica os dez milhões deles menos um: nós próprios. Mas somos uma equipa, parceiro, por isso até pode meter três ou quatro golos por jogo, que se lá atrás deixarem entrar os mesmos mais um, é tão derrotado como os coxos que metem a bola na baliza errada. Claro que temos virtudes e defeitos, o contrário não seria normal, mas mesmo aí temos a tendência para o dislate: somos capazes de arrasar um dos nossos (com os políticos à cabeça), mas não admitimos que venha um estrangeiro fazer a mesma coisa (halo, Angela Merkel), e fora do nosso país "somos os maiores", e é tudo virtudes. Nem se venham preocupar com a nossa saúde, obrigado, que temos "a melhor gastronomia do mundo", e de tudo o que temos e causa inveja à "estranja"...
...estão os enchidos. Hmmm...enchidos...salpicão, chouriço, paio, alheira, etc. etc. - a forma mais deliciosa de comer carne de animais que não fosse pela graça do fumeiro, já se tinham decomposto e transformado em matéria orgânica. Sim, é assim mesmo, caso não tenham ainda percebido os enchidos são carne que estaria podre, não fosse pelo processo em que é transformada, com o auxílio de conservantes, alguns deles químicos, e no fundo o melhor mesmo é não saber como se processam estes alimentos que fazem parte do imaginário dos portugueses, variando mesmo na forma, ingredientes e método de preparação, conforme a região do país. Os torresmos, por exemplo, são os restos que os tipos das salsicheiras apanham, e que não entrou nas salsichas (mentira, acho...), e o consumo de alimentos onde entra mais que uma víscera de mais que um animal, não deve ser nada de recomendável numa dieta que se quer saudável. Ah sim é verdade: a esmagadora maioria dos portugueses julgam que "dieta" quer dizer "não comer nada", ou "comer para emagrecer". Daí que os pobres nutricionistas e outros profissionais de saúde que lidam com pacientes obesos precisam de se explicar duas vezes:
- Ora bem, um metro e sessenta...125 quilos...qual é a sua dieta, afinal?
- Ó doutor, eu bem queria fazer dieta, mas não consigo...e... (começa a choramingar, o bucha).
- Epá "dieta" é aquilo que você come com mais frequência, homem. No seu caso estamos a falar do quê? Um boi e seis frangos por dia?
No fundo os portugueses não gostam que lhes digam o que fazer, quanto mais o que comer. Ao alertar um alarve para as quantidades industriais de sal, açúcar e polinsaturados que ingerem com frequência diária, o mais provável é que respondam com "mete-te na tua vida", ou numa versão mais dramática para nos fazer sentir culpados, "eu mato-me a trabalhar, tenho o direito de comer o que eu quiser". Isto só até à primeira coronária, porque depois disso (se sobreviver) torna-se mais manso que um gatinho, a comer a sopinha de legumes com um ar miserável, aguardando resto da refeição sem sal nem gorduras, que lhe sabe tão bem como mastigar o ar. Curiosamente os diabéticos até reagem mais ou menos à sua fatalidade, provavelmente consolados por terem aproveitado bem o deboche gastronómico que foi a sua vida até o ácido úrico se resolver acumular. Devem pensar que "do mal o menos", e de facto podia ser bem pior. Posto isto, esta semana tivemos um grande alarido, e tudo por culpa disto:
Pimba! E isto chegou para deixar um país inteiro em pânico, e abrir um debate nacional sobre alimentos que na sua maioria se apresentam numa forma fálica. É assim: não é mentira que o consumo frequente de enchidos aumenta as possibilidades de se contrair carcinomas do tracto gastrintestinal, mas não é nenhuma novidade: JÁ SE SABIA. A notícia remete-nos para um estudo publicado num jornal de Oncologia, o "Lancet", que avalia os riscos do consumo de "carne vermelha e carne processada" e a sua possível conotação com este tipo de carcinoma, com maior incidência para o cancro do cólon intestinal. No estudo participaram 22 cientistas de 10 países diferentes, que não só não descobriram nada que já não se soubesse, como nunca afirmaram nada do género "quem comer enchidos vai contrair cancro". Entre as muitas conclusões a que se chegou neste estudo, uma delas foi esta: "o consumo diário de 100 gramas de carne vermelha aumenta o risco de cancro em 17%". Assim, tal e qual, e não: "Comer um prego no pão de manhã provoca cancro de tarde". O mesmo para os "alimentos processados": 18% de aumento do risco por cada 50 gramas. E atenção que o objecto da experiência não foi a alheira de Mirandela nem o paio "York" - por "alimentos processados" entende-se uma vasta gama de produtos, desde a "luncheon meat" até as simples salsichas de lata, passando pelas latas de feijoada da Nobre, e até alguns alimentos congelados pré-preparados. Agora, "como é que eu sabia"? Totós. Sois mesmo totós.
Isto são sardinhas "em salmoura", ou seja, "salmouradas". A salmoura é um método rudimentar de preservar os alimentos, não tanto para manter a sua frescura, mas mais para evitar a sua deterioração. Actualmente podemos encontrar a água da salmoura nos frascos de alguns produtos hortícolas, nomeadamente as azeitonas. Agora pode ser que muita malta vá ficar surpreendida com isto que vou dizer agora: Portugal já foi mais pobre e atrasado do que é hoje - e era menos refilão, também. Imaginem só. Espero não vos ter causado um enfarte ou outra coisa má, pois não sei se conseguem aguentar com duas destas arrebatadoras novidades: que os enchidos "fazem mal à saúde", e que Portugal foi mais pobre. E como tal, se recuarmos 50 ou 60 anos - no tempo em que "Portugal era bom, tinha ouro e uma cerveja custava 3 tostões" - não eram todos os agregados familiares que tinham frigorífico em casa. Nem a maioria. Provavelmente nem um terço, ou pode-se mesmo dizer que isso era um luxo reservado às elites, que também eram dos poucos que tinham televisor. Não viam eram nada nele, pois não existia ainda RTP, e isto responde à hipotética pergunta "E como é que as pessoas gelavam as jolas antes dos jogos da selecção?". Nesse tempo as pessoas iam inevitavelmente aos mercados municipais abastecerem-se de alimentos, e como, repito, eram pobres, não eram muitos os que se davam ao luxo de poder comprar víveres diariamente, pautando a escolha pela frescura dos alimentos. Daí que se oiça tantas vezes dizer que o bacalhau "era a comida dos pobres", pois era um peixe submetido a este tipo de conservação, e como ele eram também certos tipos de carne, e no fundo o Cozido à Portuguesa não passa de uma miscelânea de carne cuja frescura data a tempos imemoriais.
Agora imaginem isto: e mesmo que fossem "um perigo para a saúde pública", e que mal se desse uma dentada numa fatia de bacon, surgisse um tumor do tamanho de uma bola de ténis no meio do pescoço? Evitar comer agora neutralizava tudo os que se comeu antes, foi? Esta reacção foi em tudo semelhante a outra aquando há uns anos se detectou nos frangos de aviário um antibiótico do grupo dos nitrofuranos, potencialmente cancerígenos. O Tuga, que mamava dois frangos na brasa por semana, pulou logo da cadeira e exclamou "F...-se! Nunca mais como frango, ó c...", como se os aviários tivessem bolado um plano diabólico para o destruir, a ele somente, e investido tempo e dinheiro incalculáveis nessa conspiração. Ora essa, isto é só durante a notícia, e depois de já ninguém se lembrar mais, toca a ferrar o dente no "Nitrofurango" (ah ah). É quase mecânico - um dia está na cantina a fazer uma bucha com um colega e este pergunta-lhe: "Vou buscar uma sandes de presunto. Queres uma também?", e o outro responde "Tás maluco ou quê? Não sabes que essa m... dá cancro?". E de seguida acende um cigarro, já aliviado do perigo que passou. O cigarro não faz mal, porque é consumido conscientemente, da mesma forma que dias depois está o tipo a virar um prato de linguiça assada, e o mesmo amigo fica intrigado, mas antes que possa inquiri-lo seja do que for, o outro diz-lhe logo "mete-te na tua vida que eu sei o que estou a fazer". Quem sabe se é neste "ioga tuga" que reside a solução que a humanidade tanto procura, a cura do cancro? É só ficar "à coca, tás a ver?", e quando o cancro chega "shut! elá, qué isto...xô daqui pra fora, ó cancradas". Ao ludibriá-lo com frangos medicamentados e enchidos cancerígenos é que não, assim é à traição. No fundo nada mudou: Viriato, o proto-tuga, fora traído pelos próprios camaradas lusitanos - aqui os enchidos - , que se deixaram comprar pelos romanos - o cancro. Tudo se explica, mesmo que a explicação seja um disparate sem pés nem cabeça, como este que escrevi mesmo agora.
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