quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Ó sô padre, que cara é essa?


Acabei de ler o livro “Deus Ri” (título original: “Between Heaven and Mirth”), da autoria do padre católico jesuíta James Martin. Um livro que começo por recomendar. Confesso que desconhecia este autor, talvez por ser pouco “mainstream”, mas vim a saber pela internet que tem uma extensiva bibliografia dedicada na sua maioria à interpretação dos evangelhos. Interessante, mas prefiro mesmo assim ficar por este simpático e despretencioso livro que se debruça sobre o papel do humor na profissão da fé, e que explica que o riso não é necessariamente uma manifestação de “desrespeito” pelo sagrado.

É um tema que me é particularmente querido. A religião como a conheço é muito marcada pela bitola do respeito, e mesmo as confissões protestantes que recorrem a alegres cânticos durante os seus serviços fazem-no na perspectiva do louvor e da adoração, sem margem para grandes atrevimentos ou qualquer coisa fora do âmbito do culto. O Pe. Martin faz uma interessante resenha histórica da atitude da igreja perante o humor e o riso, e de como se tentou desde sempre ocultar aquilo que é óbvio: até Jesus tinha sentido de humor, e apreciava uma boa piada.

O autor ilustra com exemplos diversos o sentido de humor de Jesus e de alguns santos, e digamos que este é um anedotário que não ofende de todo. Não só não ofende como chega a ser um pouco insonso. Bem, o humor, como todo o resto, também evoluíu, e este não é um compêndio de anedotas. Este é um livro sobretudo de análise e reflexão sobre os benefícios do humor na nossa vida, no dia-a-dia, mesmo na prática religiosa, que para ele é, e nisto concordo, “demasiado sisuda” por natureza.

O Pe. Martin vai mesmo mais longe indicando nos evangelhos onde podemos detectar um certo sentido de humor em Deus. Isso mesmo, Deus, o tal, o mais que tudo. É um pouco abstracto interpretar parte do verbo divino como “humor”, até porque o Deus oficial, o abraãmico, não era muito divertido. Quem lê a Bíblia encontra um Deus com maior tendência para castigar, aniquilar e destruir do que propriamente para contar anedotas e entreter os amigos. Mesmo o exemplo que o autor usa para ilustrar o sentido de humor do criador é discutível: o profeta Jonas. O teste a que este é submetido por Deus não é hilariante. Pelo menos para o próprio Jonas, coitado.

Fiquei a saber muito mais sobre alguns santos, e alguns factos interessantes que desconhecia. É evidente que o Pe. Martin é um estudioso e um apaixonado da hagiografia, além de um homem culto que fez um trabalho de investigação muito cuidado. Fala de experiências pessoais, de casos concretos, e da forma como discute o tema principal da obra com elementos da sua paróquia. Faz tudo isto utilizando uma linguagem muito directa e acessível, e tem o mérito de não tentar evangelizar ou reafirmar dogmas. Limita-se a apresentar o que nos é oferecido pelas escrituras e como as podemos interpretar de uma forma mais mundana. Onde podemos detectar um humor intrínseco no evangelho, e que ilações podemos disto retirar?

Toda a gente sabe que o humor e o riso não têm lugar na Igreja, pelo menos na Católica, falando de uma que conhecemos bem. (Há quem diga que os monges budistas contam anedotas e dançam, mas isto carece de fundamentação). O riso, se pensarem nisso, é considerado pela Igreja uma manifestação demoníaca. Não sei que pecados algumas pessoas (ainda) confessam nos tais confessionários, mas para quem não tem não tem muitos pecados por expiar, “rir” pode ser entendido como “pecar”. Há quem ria com vontade de qualquer coisa que “não é suposto rir”, e depois cubra a boca e diga “Deus me perdoe”. Mas porquê? Se nos dá vontade de rir, mesmo de uma tragédia ou da desgraça alheia, é apenas um impulso. Desde que não seja um riso sarcástico e maldoso, que é forçado e não entra nestas contas. Às vezes é um mecanismo de defesa. Por vezes rimos quando vemos alguém numa situação embaraçosa porque não gostaríamos de estar no seu lugar. Agora se por este motivo somos uma boa ou má pessoa, essa é uma reflexão pessoal, e não cabe a mais ninguém julgar.

Todos temos a imagem de um Deus sério, com um semblante algumas vezes plácido, mas sempre fechado. Isto pelo menos nas representações que nos são dadas a conhecer pela arte. Basta olhar para o fresco de Miguel Ângelo na Capela Sistina, “A Criação de Adão”, para perceber que nem no dia em que criou o primeiro homem Deus tinha acordado bem disposto. A única representação de um Deus sorridente e brincalhão que me recordo foi a do actor Morgan Freeman no filme “Bruce Almighty”. E mesmo aqui, sacrilégio! Este Deus é negro! Do outro lado temos o Diabo clássico e a sua gargalhada sonora e trocista, encantado com os males do mundo e a perdição das almas, o sacana. Não acham estranho que o Diabo esteja sempre contente e a rir? Será que está a ganhar a luta entre o Bem e o Mal? Mesmo para os padrões modernos, o Inferno, com os seus tons de vermelho, a luxúria e o deboche, parece um lugar mais divertido e convidativo que o Céu, onde é tudo branco e voam anjinhos que tocam harpas. Isto segundo a representação clássica. O que é preferível: orgias intermináveis ou música de câmera para a toda eternidade? A subversão dos valores no seu melhor.

Convém mais à religião transmitir o sofrimento e a dor de Cristo do que um eventual sentido de humor do Salvador. O “selling point” aqui é a forma como sofreu e morreu, alegadamente pelos nossos pecados, e como nos devemos todos sentir culpados, e isto não tem piada nenhuma. Não me apetece mesmo nada ser implicado num homicídio. Mesmo os ensinamentos que transmite nos Salmos são todos interpretados de uma forma muito rígida, muito divina. São levados tão a sério que dão a entender que Jesus só sofreu desde o dia que nasceu até à sua morte na cruz, e é quase blasfémia insinuar que ria ou que se divertia, como qualquer homem normal. O Pe. Martin recorda que o Vaticano pôs fim à discussão sobre a natureza de Cristo, estabelecendo que Jesus era um homem humano e também um homem divino, mas é mais que sabido o destino de quem se atreve a sobrepôr o lado humano de Jesus ao seu lado divino: a censura. Scorsese e Saramago que o digam. E fizessem o mesmo um par de séculos antes e acabavam na fogueira. Isto não é nada “fixe”, sermos obrigados a aceitar o mártir e proibidos de tentar entender o homem. No início dos anos 80 os Xutos & Pontapés foram censurados e excomungados (não sei se foram mesmo, mas penso que sim) por terem gravado uma versão rock do cântico mariano “Avé Maria”. Não alteraram uma palavra que fosse da versão original, e apesar da atitude nitidamente provocatória, não insultaram, e incidentalmente deram a conhecer a um público mais jovem um cântico religioso que de outra forma talvez nunca lhes chegasse aos ouvidos. Será que uma simples guitarra e bateria chegam para transformar algo puro e imaculado numa coisa maléfica e diabólica? Então a fé e os seus símbolos assentam numa estrutura muito frágil.

Não me lembro alguma vez de ver durante o ofício divino da missa um padre a sorrir ou a abordar um tema de forma mais ligeira e descontraida, com algum humor que ajude a digerir o serviço mais facilmente. E isto é tido pelos crentes como normal, e o contrário é que seria estranho. Não é por acaso que os fiéis sejam também chamados de “rebanho” em relação ao seu sacerdote ou “pastor”. Tanta obediência e resignação só encontram paralelo no gado ovino. É impossível rir ou sorrir durante uma daquelas penosas procissões que mais lembram um funeral sem a censura dos outros fiéis. Aliás, mesmo espirrar já é suficiente para levar com um ou outro esgar de reprovação. Porque é que uma procissão onde se transportam meras figuras inanimadas têm que ser sempre um mórbido suplício? Quem morreu? É assim que se manifesta a fé? É por estas e outras que não tenho religião. Já tenho coisas aborrecidas que me cheguem.

Não é preciso ser católico ou crente para ler este livro, e mesmo os seguidores da restantes religiões ditas pagãs podem lê-lo sem complexos. Não se trata de um livro religioso, nem de perto nem de longe. É no fundo uma análise concreta a uma emoção humana perfeitamente natural, e que ninguém se devia sentir culpado por achar o evangelho “engraçado”. Perante a actual falta de adesão de gente jovem à Igreja e um certo decréscimo no número de devotos, talvez fosse uma boa ideia mudar esse conceito de que é tudo o uma coisa muito séria, pesadona e enfadonha. Talvez se revertesse a indiferença com que a sociedade, cada vez mais informada e menos temente ao sobrenatural, olha para a Igreja actualmente. No mundo de hoje não é apenas com sofrimento, calvários e redenção através do sacrifício que se recrutam seguidores. Esta foi a mensagem que o Pe. Martin me passou, mas posso estar enganado. Leia também e descubra.

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei do seu texto e mais uma vez aguçou-me a curiosidade quanto à obra de que fala. Posto isto permita-me uma pequena crítica: considero a sua abordagem à atitude da igreja um tanto simplista. A igreja católica tem os seus preceitos no exercício do culto, e não passa por nenhuma crise tão grave que justifique uma mudança radical. Não sei quantos padres católicos conhece, mas eu próprio conheço muitos com sentido de humor, pessoas simples que sabem comportar-se de forma mundana quando não estão no exercício da sua vocação. O papel do sacerdote vai muito além do ofício divino, que no limite se resume a algumas horas por semana. A igreja no seu todo não é apenas missa, procissões e confissões, tem um lado humanista e social que se consegue adaptar aos desafios do mundo moderno, e que tem trabalho feito em prol dos mais necessitados. Não seja tão redutor expondo apenas o lado formal da religião, ou batendo sempre na mesma tecla da inquisição, das fogueiras, etc, um passado em que a própria igreja assumiu ter errado. Mas repito, gostei da sua prosa, e já agora, se os tempos mudaram desde a concepção clássica do Paraíso, ou do Céu, quem sabe se o Céu também se adaptou a estas mudanças? Pense nisso :)

Um abraço,

Fernando Cardoso

Leocardo disse...

Sr. Fernando Cardoso:

Em primeiro lugar obrigado pelo seu comentário, que se insere no que idealizei para este espaço que se quer de debate civilizado.

Quanto à sua critica, dou o braço a torcer quando diz que tenho uma tendência para dar mais destaque aos aspectos negativos da igreja. Mas o papel da IC no auxílio aos necessitados é um dado adquirido, e mal estávamos se assim não fosse. A Igreja adquiriu durante os séculos em que teve poder ilimitado para se dotar dos meios para desempenhar uma função que no fundo lhe é inerente, e apenas cumpre com a obrigação que apregoa ser da sua natureza: a benfeitoria e a caridade.

O que me leva a criticar de forma tão persistente são os aspectos que podem ser melhorados de modo a lançar definitivamente a Igreja na esfera da modernidade. Claro que os padres também são pessoas, e não os "santos" que dão o sermão ao Domingo. Mesmo na obra a que dedico este post o pe. James Martin apela ao restante clero que não tenham pudor em considerar o humor um tempero do carácter humanista da Igreja, e que não é nenhum sacrilégio exercer a fé com mais ligeireza e menos rigidez.

Quanto a essa suposta adaptação do conceito do Paraíso à modernidade, era bom que a Igreja revelasse rapidamente a sua versão 2.0 do Céu, para que se tornasse mais convidativo para as almas imortais. O maior progresso dos últimos anos foi o de revogarem o dogma de que os recém-nascidos não baptizados ficariam num limbo entre o Céu e a Terra. Tendo em conta que todas as novas tendências nos últimos cem anos foram apressadamente condenadas pela Igreja (divórcio, adultério,homossexualidade, drogas recreativas, música rock, mini-saia, etc.), penso que restam muito poucas almas no tal Céu.

Mas ainda penso que a culpa deve ser minha, pois não consigo transmitir de forma concreta o que penso da igreja, e às vezes dou a entender que se trata apenas de má vontade e gozo em chatear os crentes. Vou tentar transmitir a minha mensagem de modo a que não se façam segundas leituras.

Cumprimentos.