sábado, 29 de dezembro de 2012

Alentejo, meu amor


Eu hei-de ir, hei-de ir
Eu hei-de ir andando
Tu hás-de ficar
Em casa chorando

Vamos lá saindo
Por esses campos fora
Que a manhã vem vindo
Dos lados d’aurora
Dos lados d’aurora
A manhã vem vindo
Por esses campos fora
Vamos lá saindo

E eu dantes era
E agora já não
Da tua roseira
O melhor botão


Canto Alentejano

Adoro o Alentejo, e adoro os alentejanos. Como vivia no Montijo, região que tecnicamente é “além-Tejo”, sinto-me também um pouco alentejano. Quando se fala de alentejanos, a maioria das pessoas lembra-se das anedotas, muitas delas que levam a que exista um preconceito de que este povo é preguiçoso e ignorante, mas que por vezes se redime com uma certa dose de chico-espertismo. Não penso que os alentejanos se devam sentir diminuídos pela existência deste imenso anedotário. Eu sentir-me-ia orgulhoso. Dizer nos tempos que correm que se é alentejano já não é motivo de chacota. Há quem o faça sem vergonha de espécie alguma. Aliás, com o actual estado da nação, completamente em farrapos, o que adianta discriminar quem quer que seja baseando-se na origem? É parvoíce.

O Alentejo divide-se em Alto Alentejo e Baixo Alentejo. O primeiro é constituído pelos distritos de Portalegre e Évora, e a “fronteira” com o distrito de Castelo Branco é marcada pelo concelho portalegrense de Gavião, a nordeste de Lisboa. Bem a nordeste, e pode-se mesmo dizer que ser alentejano não significa necessariamente ser do sul de Portugal. Quem nasce em Lisboa é mais sulista que quem nasce em Gavião, Nisa, Monforte ou Ponte de Sôr, todos sedes de concelho do distrito de Portalegre. Este é um distrito alentejano que sofre do problema da interioridade, mergulhado no provincianismo. Menos de 120 mil habitantes, sendo a sua cidade mais populosa a mítica Elvas, com 23 mil habitantes. A sede de concelho tem pouco mais de 15 mil, e mesmo Campo Maior, conhecida pelos famosos cafés Delta da família Nabeiro, ainda é vila, e tem cerca de 8 mil “campomaiorenses” apenas. Falta gente a este alentejo vetado ao abandono.

O distrito de Évora encontra-se menos desertificado, apesar de tudo. Tem 168 mil habitantes, e a capital de distrito, a inspiradora cidade de Évora, repleta de motivos de interesse, tem perto de 50 mil. Existem ali concelhos lindíssimos habitados por gente simpática, e cada um com a sua história e características muito próprias. Temos Arraiolos com os seus lindos tapetes, Vendas Novas e as famosas bifanas, Borba dos vinhos, Redondo, terra natal da família Salomé, e também do vinho, Mourão, berço do cantor Marco Paulo, Montemor-o-Novo, Estremoz e outras, e as minhas favoritas: Reguengos de Monsaraz e Vila Viçosa. Se há dois concelhos onde podemos sentir a verdadeira matriz de Portugal, da sua natureza fortificada, medieval, com campos a perder de vista, são estes dois, cuja visita se torna indispensável. Quem não conhece Vila Viçosa e Reguengos, não conhece Portugal.

O Baixo Alentejo é o Alentejo por excelência. Abrange a parte sul do distrito de Setúbal e todo o distrito de Beja. Este é o Alentejo das tais anedotas, da bolota, dos chaparros, da cortiça, das samarras, do porco preto. Se alguma vez tive dúvidas sobre onde se come melhor em Portugal, foram um dia completamente dissipadas quando jantei num restaurante em Azeitão um buffet de comida alentejana. Os enchidos, os queijos, as açordas, as coentradas, as sopas, o pão. Tudo do bom e do melhor, e da forma mais simples que se pode imaginar. Existe no Baixo Alentejo um petisco a quem muita gente pode torcer o nariz, mas garanto que é uma delícia: túbaros. E o que são túbaros? Testículos de carneiro ou de porco (que em rigor se chamam colmilhos) temperados com sal, pimenta e limão e cozinhados com molho picante de tomate. Uma experiência gastronómica inesquecível, e para os mais desconfiados garanto que não há ali “espermas” de espécie nenhuma. Alguém faltou às aulas de Biologia, ou não prestou muita atenção.

O distrito de Beja conta apenas com 150 mil alentejanos “hardcore”, 35 mil deles na capital de concelho. É uma falta incrível da minha parte: nunca fui a Beja cidade, mas conheço mais ou menos bem o segundo concelho mais populoso, o de Odemira, o maior do país em área. Aqui encontramos algumas das melhores praias de Portugal, com destaque para as fantásticas praias junto a Vila Nova de Milfontes, na foz do rio Mira. Mil fontes, só o nome diz tudo. Outros concelhos dão um encanto especial à região, e enumerá-los traz só por si uma calma especial, sabendo que ali está a nata do Alentejo: Moura, Cuba, Serpa, Castro Verde, Mértola, Vidiguêra, perdão, Vidigueira, e já na fronteira com o Algarve temos Almodôvar. É neste distrito que encontramos Barrancos, conhecida pelo regime de excepção nos touros de morte, e Aljustrel, outrora cidade próspera graças à indústria mineira, que vai mesmo assim subsistindo. A pequenez do distrito em termos populacionais chega a surpreender; o concelho de Alvito tem pouco mais de dois mil habitantes. Menos que em alguns edifícios de Macau! Pode-se dizer com alguma segurança que ali toda a gente se conhece.

O distrito de Beja é o mais quente do país. Ali faz calor a sério, o que pode explicar a tal letargia tão empolada pelas anedotas. Pudera; tentem lá cavar a terra debaixo de um sol abrasador de mais de 40 graus e com escassez de água, e vão ver o que é bom para a tosse. Na Amareleja, freguesia do concelho de Moura e terra natal da actriz Eunice Muñoz, chegaram a ser registados 47.4º C, um recorde nacional. Isto pode parecer muito, mas basta encontrar uma sombrinha debaixo de um chaparro e aguenta-se muito bem. Ainda quanto à Amareleja, esta serviu de inspiração à tal “Merdaleja”, de onde é originária a personagem “Maximiana”, criada por Herman José, a caricatura da típica mulher alentejana. Outra mulher alentejana que todos conhecem é Catarina Eufémia, uma jovem ceifeira analfabeta mãe de três filhos, morta a tiro em 1954 pela GNR durante uma greve de assalariados rurais no Monte do Olival, uma pequena aldeia da freguesia do Baleizão, concelho de Beja. Catarina tornou-se um símbolo imortal de resistência ao regime fascista, bem aproveitado pelo Partido Comunista Português. O PCP é ainda o partido mais votado no distrito de Beja, onde todas as autarquias são comunistas.

O Alentejo, a quem o velho Salazar chegou a chamar “o celeiro de Portugal” é um mundo a descobrir. Aposta-se no ecoturismo, ainda que timidamente, mas bem. Ali a poluição é residual, o trânsito resume-se a estradas a perder de vista, rodeadas de campos loiros sem fim, pontilhados de arvoredo patusco, e o stress…qual stress? Compre um pão alentejano, um salpicão, uma litrada de tinto, saque do canivete e tem um dia inteiro para dar a volta a tudo isto. Sente-se a apreciar um dos poucos paraísos que ainda nos restam neste mundo tão agitado e desgastante. Escute com atenção os sofridos e apaixonados cantares alentejanos, e deixe-se embalar por estas gentes que não chegam a meio milhão e para quem a felicidade são as coisas simples da vida. É assim o nosso Alentejo, o mais bem guardado dos segredos.

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