Tenho-me abstido de comentar o caso do pequeno Afonso Couto, que sofre de leucemia, e se encontra em Portugal à espera de um dador compatível de medula óssea. Só que há coisas que é melhor não calar, mesmo que seja um assunto sensível que toque com problemas privados.
O Afonso é filho do conhecido piloto português radicado em Macau, André Couto, e Graça Saraiva, a sua esposa, uma jovem macaense. O caso levantou uma bonita e espontânea onda de solidariedade entre a comunidade portuguesa, que se deslocou em três viagens a Hong Kong para se inscrever no centro de dadores de medula óssea, esperando encontrar um tipo compatível com o pequeno Afonso.
A onda de solidariedade espalhou-se um pouco por toda a parte, desde a uma página no Facebook até à publicidade em Portugal. Contudo a publicidade e as boas intenções podem não ser suficientes. O Afonso tem sangue português e sangue chinês, pelo que será “mais provável” encontrar um dador compatível entre a sua comunidade: a macaense de Macau.
É difícil convencer as pessoas de que este é um procedimento simples e inofensivo, porque na verdade, não é bem a mesma coisa que doar sangue. Requer anestesia local, e é uma espécie de cirurgia (pode ver
aqui um vídeo que explica bem o procedimento), mas não é a mesma coisa que doar um rim ou qualquer outro orgão indispensável.
A medula óssea, aquilo que conhecemos por “tutano”, é o tecido gelatinoso que preenche a cavidade interna dos ossos, e não é um risco se uma pequena quantidade for retirada. É difícil convencer alguém perfeitamente saudável ou ainda jovem a submeter-se a um procedimento cirúrgico “desnecessário e doloroso”, mas o mais desnecessário e doloroso é perder-se uma vida, ainda por cima devido à ignorância ou ao medo.
É extraordinário que vivamos numa era em que se descobrem as chaves de alguns dos maiores mistérios da vida e da ciência, e não consigamos derrubar o muro do preconceito e do egoísmo. Entretanto durante esta onda de solidariedade com o pequeno Afonso foram encontrados três dadores compatíveis com outras crianças que esperavam um transplante de medula óssea.
Salvar vidas não passa só pela vontade da ciência e da medicina; passa ainda pela nossa colaboração e respeito pela vida do próximo.
10 comentários:
Ainda há bem pouco tempo vi uma reportagem na televisão que indicava que a doação de medula óssea era tão somente a retirada de sangue como se fosse para fazer análises sanguíneas.
Disseram também que actualmente, o processo passa por tomar um comprimido algum tempo antes que faz com que a medula óssea se desprenda dos ossos e entre na corrente sanguínea. De seguida, faz-se a extracção de sangue e pronto. Está feito.
Caro Leocardo
Não posso deixar de acrescentar a informação que passa no seu post pois está muito incompleta e, colocada desta forma, pode ter o efeito contrário ao desejado. Em primeiro lugar, deixe-me informar que infelizmente falo com conhecimento de causa; há cerca de 4 anos foi diagnosticada uma leucemia à minha irmã e vivi com ela todos os momentos da sua doença, tendo acompanhado todas as etapas do seu tratamento. A minha irmã venceu. A leucemia pode ser vencida. Mas nos casos em que é necessário um transplante, é preciso encontrar dador compatível e, igualmente importante, atempadamente. Infelizmente enquanto nos decidimos se vamos ou não ser dadores o tempo passa e um dia, apenas um dia, pode fazer toda a diferença para quem sofre da doença. Pela importância que o assunto me merece, pela forma como me sinto automaticamente solidária com todos os doentes com leucemia e suas famílias resolvi contar aqui como se processa a colheita e o transplante. Através do relato de alguém que viveu uma situação semelhante na família talvez seja mais fácil perceber como através de um processo muito simples se pode salvar uma vida.
A medula óssea é de facto um material esponjoso que se encontra no interior dos ossos, mas é o local onde as células sanguíneas são produzidas (glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas) a partir de células mãe ou progenitoras e são estas células que são recolhidas para, posteriormente, serem transplantadas para o doente com leucemia.
Efectivamente, uma das formas usada pode ser a que referiu, através de colheita directa das células necessárias e, nesse caso, teria de haver um breve internamento de 24 horas e uma intervenção com anestesia; mas não é essa a modalidade actualmente seguida, só em situações muito raras, e pelo que fiquei a saber quase nunca ou mesmo nunca é esse o processo. Na verdade, actualmente os procedimentos não são nada complexos.
Em primeiro lugar, na fase em que nos voluntariamos para eventuais dadores de medula é feita uma colheita de sangue como se fosse para uma análise, a partir dessa colheita ficamos inscritos no banco de dadores de medula óssea sem qualquer obrigação de efectivamente virmos a doar; posto isto, se (se e só se, o que infelizmente é pouco provável pois a hipótese de sermos compatíveis com alguém é muito baixa), mas se um inscrito no banco de dadores for identificado como compatível com alguém que precise de um transplante é contactado (o doente e respectiva família só tem essa informação se o dador autorizar e aceitar doar a sua medula) o que significa que o potencial dador, mesmo identificado e inscrito no banco, pode optar por não doar; ultrapassadas estas etapas iniciais (eu acredito sempre que um dador identificado não há-de recusar...) ao dador são feitos alguns exames médicos para avaliar do seu estado de saúde - nada complicado, electrocardiograma, raio-X tórax, umas análises; avaliada a situação clínica do dador prepara-se a colheita de medula (todas as despesas decorrentes do processo são imputadas ao sistema de saúde do doente e não do dador). O dador tomará então "factores de crescimento" que não fazem com que “a medula se desprenda dos ossos”, como diz o comentador Paulo39, mas que têm como objectivo potenciar a circulação das tais células mãe na circulação para que mais facilmente e rapidamente possam ser colhidas no sistema sanguíneo periférico (ou seja, a partir de uma veia no braço). Uns dias depois de ter tomado os factores de crescimento é feita a recolha. Como? Num processo efectivamente semelhante ao da recolha de sangue, embora um pouco mais demorado (a duração do processo depende da quantidade de células disponíveis no sistema sanguíneo, por isso pode demorar mais um bocadinho nuns casos do que noutro). Ou seja, é como se estivesse a tirar sangue só que em vez de ser colhido para um saco há um tubinho que liga a um aparelho chamado "separador de células" e que vai recolher apenas as células necessárias, as tais células-mãe ou células progenitoras - que são as que o doente precisa receber e que se irão instalar na medula e produzir células sanguíneas saudáveis, salvando a sua vida!
Em casos de dadores não relacionados não são estabelecidos contactos pessoais entre dador e doente, eu assisti à colheita porque o dador era familiar (uma irmã) e fui eu que a acompanhei quer na preparação quer no momento da colheita; posso garantir que esteve sempre bem disposta (não é exagero por estar a ser dadora para uma irmã, falo sério, não teve qualquer problema nem com os factores de crescimento nem na altura em que foi feita a colheita); a acompanhar esteve sempre um médico e uma enfermeira.
As células colhidas e separadas pela máquina são colocadas num saco (como os das transfusões de sangue) ficando as não necessárias para o transplante no sistema sanguíneo do dador. E o transplante é isso mesmo: uma espécie de transfusão só que em vez de ser de sangue é de células maravilhosas!
Os riscos decorrentes de todo este processo são para o doente, sendo evidente que pode aceitar ou rejeitar a medula não obstante existir compatibilidade. O dador, terminado o processo volta para a sua vida normal, para casa, para o trabalho, para o cinema... Talvez no dia seguinte tenha umas nódoas negras no braço no local onde foi feita a colheita. Mas nada mais do que isso.
Não será demais lembrar que, se no nosso caso felizmente foi encontrado um dador familiar, infelizmente isso só acontece em cerca de 25% dos casos, pelo que a esmagadora maioria dos doentes com leucemia precisam de um dador não familiar para poderem sobreviver; daí a extrema importância de aumentar o número de inscritos no banco de dadores. Durante todo o período que passei no IPO de Lisboa, conheci muitos casos de sucesso, infelizmente também conheci muitas famílias cuja esperança cessou por falta de dador. Apesar de todas as campanhas que têm vindo a ser realizadas, muitas destas famílias não podem contar uma história com um final feliz como a minha. Em Portugal têm sido os esforços desenvolvidos e tem sido muito boa a resposta da população, graças ao esforço da Associação Portuguesa contra a Leucemia o número de voluntários inscritos para dadores de medula óssea tem vindo a aumentar de uma forma fantástica: em 2002 Portugal contava com 1377 inscritos; hoje esse número ultrapassa os 150 mil e somos o segundo maior registo da Europa por milhão de habitante.
A única coisa que posso acrescentar é juntar-me à voz da família do “Afonso de Macau” e de todos os “Afonsos” do mundo (o registo de cada país faz parte de uma rede mundial e podemos salvar e ser salvos em e por qualquer país) e pedir-vos, por favor, para pensarem um pouco e quem sabe inscreverem-se como dadores; não custa nada. Pode salvar uma vida. É muito pouco por tanto…
Obrigada.
Sugiro uma vista de olhos aos sítios do Centro de Histocompatibilidade e da Associação Portuguesa contra a Leucemia: http://www.chsul.pt/web/Folheto_Informativo_CEDACE.pdf e http://apcl.staging.sapo.pt/PresentationLayer/ctexto_01.aspx?ctlocalid=28
Excelente post Maria. Um testemunho longo mas que vale a pena ser lido.
O caso do "Afonso de Macau" é muito triste, porque muitos de nós conhecemos o pai, a mãe, os avós. Eu já fiz o que podia, tornar-me dador. Agora o futuro do menino a Deus pertence.
AA
A Mãe do Afonso não é Macaense mas sim portuguesa. A avó paterna do Afonso é que é Macaense.
Obrigado Maria, muito elucidativo.
Muito obrigado à Maria pela colaboração. É isto mesmo que espero dos meus leitores :)
Há dias encontrei na net esta reportagem da SIC sobre transplantes de medula.
http://sic.sapo.pt/online/video/programas/vida-nova/2009/12/pedro-figueira07-12-2009-125459.htm
Para quem não a viu,tem a oportunidade de a ver no endereço indicado.
Os meus parabéns à Maria, é preciso desmistificar todo o processo de doação de medula.
Os leitores respondem sempre de forma séria quando o assunto é realmente sério. Outros assuntos há em que o melhor que se pode fazer é ajavardar (desde que sem insultos pessoais).
Lá diz o provérbio, deve-se levar a vida a brincar, mas nunca brincar com a vida ...
Enviar um comentário