Era um mundo admiravelmente ordenado segundo a convenção, bafejado pelo bem-estar e a expansão económica, a paz e a primeira revolução tecnológica (a televisão, a batedeira, o aspirador). Os códigos de honra eram apertados e as pessoas davam a palavra. Os mais pobres compravam açúcar amarelo e sapatos a prestações e os remediados compravam a primeira aparelhagem com som estereofónico - "this is stereo sound", dizia um homem em basso profondo no LP de demonstração. E o primeiro electrodoméstico. Compravam e davam a palavra de honra de que pagavam a dívida. Muitos dos contratos de bairro entre o comerciante e o cliente começavam pela palavra de honra e um aperto de mão. As mãos tinham a sua importância nos anos 50. Não só porque se faziam muitas coisas com as mãos; também porque as pessoas que faziam coisas com as mãos ainda não tinham começado a ser desrespeitadas e substituídas por máquinas.Clara Ferreira Alves,
in Expresso
Confesso que sou um leitor assíduo de Clara Ferreira Alves no Expresso. Por isso não pude deixar de estranhar o seu último artigo, de segunda-feira, intitulado "Os gloriosos anos 50". Não sei se a Clara estava a brincar, mas deve ser uma "inside joke" qualquer da senhora. Como se pode alguma vez pensar que os anos 50 foram "gloriosos"? Este artigo tenta ser uma espécie de "lição" sobre certos valores com uma certa dose de nostalgia, mas para mim soa a saudosismo bacoco, e com muito pouco conhecimento de causa.
Para já CFA nasceu em 1956, portanto deve-se lembrar muito pouco dos anos 50. Eu próprio nasci em 1972 e não me lembro de quase nada dos anos 70. Vi fotografias dos anos 50, que me mostrou o meu avô, e do resto sei muito pouco. Sei que foi o auge da Guerra Fria, deu-se o Grande Passo em Frente na China, aconteceu a Revolução Cubana, a "caça às bruxas" nos Estados Unidos, a Guerra da Coreia, as pessoas continuavam a morrer de poliomelite e tubercolose. Em Portugal reinava Salazar e em Espanha Franco. Lá "ordem" havia, mas longe de se poder chamar "glorioso".
As deslocações eram quase impossíveis, as vias de comunicação eram inexistentes, muito poucos podiam pagar uma viagem de avião, os comboios andavam a 20 km/h. A informação era controlada, não havia forma de saber nada. A televisão acabava de ser inventada, e até aos ao final dos anos 60 era privilégio de muito poucos. Pouca gente tinha telefone. Quando CFA diz que "os sapatos levavam meias-solas e ninguém deitava nada fora, nem ricos nem pobres" isto era sinal de pobreza e atraso, não de "boa educação".
Podia ser muito giro; as pessoas vestiam-se muito bem (o meu avô obrigava o meu pai a usar a gravata tão apertada que o sr. Leocardo nunca mais quis usar uma gravata na vida), o crime nas cidades não é o que era hoje, e havia respeito pelos mais velhos sim, era impossível dizer-lhes não, ou que estavam errados, mesmo quando a demência tomava conta deles. Tanto respeito que até enjoava. Havia respeito pelos poucos privilegiados que podiam estudar, num tempo em que a maioria só estudava até à 4ª classe, o que perpetuava o domínio das famílias mais abastadas, que mantinham o monopólio do dinheiro, do poder e do conforto.
Quem me tira a internet, os DVD, os ecrã plasma, os iPod, as câmaras digitais (as futuras gerações vão ter muito mais registos fotográficos do nosso tempo do que existe actualmente dos anos 50) e todos esses maravilhosos "desperdícios" de que a Clara fala, tira-me tudo. Às vezes converso com amigos sobre os anos 80, o que nos traz sempre alguma nostalgia. Mas se nos perguntam se gostávamos de voltar àquele tempo, a resposta é "não". É uma sorte tremenda poder viver neste tempo, apesar dos caminhos mais sinuosos e menos seguros, e não trocava isto por nada.
Quanda CFA diz que tem saudades de "escrever com a mão", vêm-me à memória os tempos da faculdade, quando me davam cãibras de passar a limpo as sebentas. Ainda hoje tenho pesadelos. Já me canso de escrever meia dúzia de linhas com um lápis, e penso que isso se chama "evolução". O mais irónico é que a própria não deve ter escrito o artigo em causa numa folha de papel. Até aposto que não escreveu. Os anos 50 foram gloriosos sim, para o Sporting.
2 comentários:
Parece que o Leocardo é que passou um bocadinho ao lado do artigo da Clara Ferreira Alves. Suponho que isto seja apenas um excerto mas, se o artigo peca por saudosismo bacoco, não é certamente neste excerto.
Não me parece que a CFA esteja a fazer nenhuma cruzada anti-evolução tecnológica nem nada do género. O que este excerto fala é sobretudo dos tais códigos de honra partilhados por ricos e pobres, do respeito, de tudo isso (sim, CFA tem toda a razão!) que se perdeu neste novo e maravilhoso mundo idiota do século XXI.
Em nome das inovações tecnológicas e do "modernismo" tudo é permitido, inclusive adquirir coisas que nunca se vai ter dinheiro para pagar, inclusive mostrar um profundo desrespeito por tudo e todos (eu sabia dizer tantos palavrões quanto os jovens de hoje sabem, mas a grande diferença é que tinha o cuidado de não os gritar na rua, à frente de velhos e novos, homens e mulheres). E eram gloriosos, sim, esses tempos, porque se atingiu um nível que, por muito pobrezinho que fosse, era muito superior a qualquer nível anteriormente conhecido.
Hoje estamos alguns patamares acima do nível dos anos 50 (materialmente falando, e só isso). A diferença é que se está a andar para trás. A classe média dos países desenvolvidos está a empobrecer, os trabalhadores a ser despedidos (muitas vezes precisamente para serem substituídos por máquinas) e os ricos, esses, com todas as suas golpadas, continuam a enriquecer. Isto é que é glorioso, então, segundo o Leocardo que, no fundo, é um deslumbrado.
Deslumbre-se então, se assim o prefere, mas ao ritmo que as coisas têm seguido e com a direcção que tudo tem tomado neste maravilhoso século XXI dos idiotas encartados, não tardará muito que dê razão à CFA e pense que, afinal, os anos 50, à sua maneira, sempre eram gloriosos.
Concordo consigo em alguns aspectos, mas "voltar atrás" não é a solução. O progresso é um facto, sentimo-lo todos os dias, e provavelmente nos últimos 20 anos assistimos a mais evolução na tecnologia, na qualidade de vida e nos costumes do que nos 100 anos anteriores. As coisas podem não estar a correr bem para toda a gente, é verdade, mas temos que olhar para a frente, e não pensar que lá nos tempos do não-sei-quê é que era bom, até porque esses tempos não voltam.
Cumprimentos
PS: deixo-lhe aqui o link para o artigo da CFA: http://aeiou.expresso.pt/os-gloriosos-anos-50=f505193
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