Macau é uma cidade de gente muito trabalhadora. Até há pouco mais de 20 anos, o enclave então administrado pelos portugueses dividia-se em três grupos distintos: os portugueses nativos, na sua maioria técnicos vindos da República, os portugueses de Macau, e os chineses. Os chineses dividiam-se em dois subgrupos: os comerciantes e empresários, e os operários, uma maioria significativa. Esses operários eram normalmente chineses de segunda geração, filhos de continentais que vieram para Macau durante a ocupação japonesa, ou durante uma das muitas vagas imigracionais. São os pais e avós de muitos dos chineses que hoje, quase 10 anos passados da transferência de soberania ocupam cargos públicos, administrativos, ou que preenchem milhares de postos de trabalho criados pela liberalização do sector do jogo. Enquanto estes jovens puderam já frequentar o ensino superior ou completar o secundário, já os seus pais começavam a trabalhar muito cedo, ora em fábricas, na construção civil ou noutros empregos menos bem remunerados. As famílias eram normalmente numerosas, e os filhos mais velhos entravam no mercado de trabalho ainda na adolescência, de modo a poder ajudar os pais a criar os irmãos. Na sua maioria, os irmãos mais novos destas famílias têm melhores habilitações académicas, e por consequente melhores empregos. Tudo graças ao esforço dos mais velhos, que pode-se dizer “deram no duro”, perdendo eles próprios as oportunidades que os seus irmãos ou os filhos tiveram.
Tudo isto para falar da falta de uma lei sindical digna desse nome em Macau, que equipare o território a qualquer outro lugar civilizado neste planeta de Deus. Como se sabe, o deputado José Pereira Coutinho apresentou mais uma proposta, que foi – como seria de esperar – chumbada na Assembleia Legislativa. Este “chumbo”, mais um, voltou a indignar a
intelligenzia do território. Gente que estudou, que lê, que anda bem informada, que trabalha sentada, que viaja, que come nos melhores restaurantes, que vive em casas com três quartos e tem um ou dois carros, que chamam “utilitários”, na garagem. Gente que tem direitos e que é conhecedora desses direitos. Mas o que pensam os outros? Nada. Para eles isto é perfeitamente normal. Para eles os “senhores” lá do hemiciclo “devem ter razão”. Se o sôtor diz que é, é porque é. Mais uma vez, mais do que o grupo de deputados que lucra desalmadamente com a exploração do trabalho alheio, a culpa é das mentalidades. Menos horas de trabalho? Férias pagas? Faltas por doença? Salário mínimo? Greve??? Não nos lixem. Gostei especialmente da justificação do deputado Tsui Wai Kuan, que perguntou a Pereira Coutinho “onde está a consulta pública?”. Muito bem. Estou mesmo a ver. Pergunta-se a um cidadão médio: “gostava de trabalhar menos e ganhar mais?” e ele vai responder “não”. Vai mesmo? Então vamos lá a essa consulta.
Adiante. O deputado Pereira Coutinho usou o artº 27 da Lei Básica para justificar a necessidade de uma lei sindical.
“Os residentes de Macau gozam da liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e em greves”. A presidente da AL, Susana Chou, “puxou as orelhas” ao presidente da ATFPM, avisando-o da perigosidade de atirar assim com a mini-constituição do território sem “interpretar” primeiro. O artº 27 diz que os residentes de Macau “gozam” desses direitos, mas nada sobre a AL precisar de legislar nesse sentido. Já o famoso artº 23 diz que
“A Região Administrativa Especial de Macau deve produzir por si própria, leis (…)”. Não sou jurista, e não tenho nada contra o artº 23, mas
“deve” deverá ter tanto valor obrigatório como “gozam”. Claro que há diferenças, mas aí está, é tudo uma questão de interpretação. Depende de quem fica a ganhar, obviamente.
Voltando à questão das mentalidades, que para mim é muito mais importante o que as pessoas sentem e pensam do que estudos, leis ou comparações com outros sistemas jurídicos e realidades diferentes. O povo chinês, com uma História e cultura muito díspares da nossa, tem consciência que só trabalhando mais consegue viver melhor. Se isto está certo ou errado, não interessa. Se isto é uma desculpa para a mesma “cambada” andar a enriquecer à custa dos outros pagando “amendoins” aos seus assalariados, pode ser, mas é a realidade. Por cada um que recusa um trabalho por muito precário que pareça, existem dez dispostos a aceitá-lo. Enquanto que nós, portugueses, saímos para a rua e batemos o pé à minima pisadela, já para a força laboral local é preciso que os calos estejam já em sangue. Olhando para a nova lei laboral, por exemplo, que atribui regalias aos trabalhadores que antes não existiam (feriados obrigatórios, pagamento redobrado por trabalho ao feriado), observamos como muita gente torceu o nariz. Para uns foi insuficiente, para outros foi mexer com o tecido empresarial da nossa economia que mais dificuldades atravessa: as pequenas e médias empresas. E depois é preciso não esquecer que este vazio sindical, que tão bem serviu os antigos senhorios do território, continua a servir os novos. Mudaram os intérpretes, mas a música é a mesma.
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