Quando era chavalinho, a minha avó dizia-me quando estava zangada comigo: "ai que temos a Páscoa ao Domingo...". Nunca percebi muito bem o que isso queria dizer, até ao dia em que descobri que a Páscoa era sempre ao Domingo. Bem achado. A Páscoa é a altura em que celebramos a morte e a ressurreição de Cristo. Cristo era um indivíduo bestial, que "morreu para nos salvar". Do quê nunca soube bem, exactamente. Se calhar foi da guerra, do ódio, da peste, das injustiças, da fome e todas essas coisas que não temos no mundo de hoje, e ainda bem! Agora vou parar com o sarcasmo, pronto, já perceberam onde quero chegar.
A Páscoa traz-me recordações bestiais da infância. Era um dia muito especial, o Domingo. Acordávamos pela manhãzinha, ligávamos a TV para ver a Eucaristia Dominical (não éramos família de ir à missa), vestiamos a fatiota nova e depois iamos a casa da avó almoçávar o divinal bacalhau. Éramos uns quinze ou vinte à mesa, entre tios, primos e afins. Os mais velhos ofereciam ovos de chocolate, coelhos de chocolate, amêndoas e todas essas coisas que fazem um mal desgraçado aos dentes. À tarde iamos passear a Fátima, ou se o pai estava mais bem disposto, a Leiria, que era bem mais divertido (tinha um centro comercial!).
Ao fim da tarde voltávamos a casa da avó, onde se ia preparar o jantar. Depois de um fim-de-semana a comer peixinho e a jejuar, a velhota mandava o meu avô esfolar dois coelhos, que eram depois cobertos com arroz de cabidela para fazer as delícias dos convivas. Começava-se a Páscoa a comer coelhos de chocolate, e acabava-se com o propriamente dito, de carne e osso. Triste destino para o símbolo da fertilidade tão comemorado nesta época. Escusado será dizer que nunca comi um coelho tão bom como aquele que a minha avó fazia. Marchava um agora, apesar de já passar da meia-noite e amanhã ser dia de trabalho. Só para matar saudades. Ai as saudades...
Uma presença indispensável na mesa à Páscoa era o folar. Nunca percebi isso do folar, sinceramente. Um bolo seco, desinteressante, feito de água, ovos, sal e farinha, com uns inexplicáveis ovos cozidos com casca escondidos no meio. Aprendi depois que é o símbolo da união, solidariedade e irmandade. Talvez fosse por isso que ninguém lhe tocava (para não desunir), e ficava sempre para a avó comer torrado com manteiga e chá no dia seguinte. A avó tinha um bom gosto e uma imaginação fora de série. O folar é o equivalente pascal do natalício bolo rei: meramente decorativo e simbólico. Uma vez passei as férias da Páscoa em Mirandela, na casa de uns tios, e aquilo é que era um folar como deve ser. Linguiça, chouriço, salpicão e carne de porco. Podia não ser muito cristão, mas a malta transmontana é que a sabe toda.
Hoje ofereci ovos e coelhinhos de chocolate à mulher e aos miúdos. Os coelhos de chocolate de hoje são tão queriduchos e bonitinhos, que a mulher diz que "não tem coragem de os comer". Vêm com guizos, fitinhas e com um ar sorridente. Onde é que já se viu, coelhos sorridentes? Já os miúdos não descansam enquanto não têm quantidades monstruosas de chocolate no bucho. Para mim, que não sou religioso, a Páscoa não me diz muito. Dizia, quando era tudo sobre o bacalhau e o coelho da avó. Para o Ribatejo, Macau e para todo o mundo, os meus desejos de uma santa Páscoa. E comam lá a porcaria do folar.
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