Passei esta manhã pela Escola Portuguesa para tratar de assuntos relacionados com os meus petizes, e por coincidência, passei por lá durante o recreio. Como são diferentes os miúdos de hoje, e como brincam de forma tão diferente da nossa. Como tanta coisa mudou. Continuam a correr, a soltar, aos empurrões, a gastar toda aquela energia tão característica da idade. Vê-los a brincar trouxe-me recordações giras, de crescer num Portugal pós-PREC, cheio de pequenas maravilhas e singularidades que me fazem pensar que os jovens de hoje podem até ter a vida mais facilitada, mas se calhar não são assim tão felizes.
Não gosto de parecer paternalista ou saudosista, de achar que a minha infância foi melhor do que as que me antecederam ou sucederam, mas penso que tive realmente muita sorte em ter crescido nos anos 80, e ter já durante a idade adulta assistir às maravilhas daquilo que chamávamos "o futuro". A autoestrada da informação, o evento da internet, dos telemóveis, dos iPod, etc. Há velhos que nem sabem o que é um walkman, quanto mais um iPod. No que toca a crises e guerras, estas que temos hoje batem muito mais levemente que as do passado, graças à imensidão de informação - quase ao segundo -, das previsões, das soluções, tudo parece muito melhor.
Nunca me passou pela cabeça que estaria hoje aqui a escrever estas linhas, a abrir o peito para o mundo inteiro ler, poder ligar a alguém em qualquer parte do mundo de qualquer sítio, poder saber o que se passa sem precisar de depender da imprensa escrita ou dos serviços noticiosos. Isto de um miúdo que um dia nasceu no Ribatejo, que estudava numa escola primária onde nem existia uma biblioteca, quanto mais internet. O recreio era passado a jogar à apanhada, a trocar cromos, raspar Kalkitos ou a jogar futebol. Como não havia campo e muito menos balizas, improvizava-se e fazia-se um estádio do corredor das traseiras que dava à casa de banho. Isto para quem não tinha o azar de ficar na sala no intervalo, pois eram muito menos bonzinhos os profes da altura.
Eram tempos despreocupados, aqueles. Não se falava de terrorismo, de pedofilia, de BSE ou de gripe das aves. Tinhamos a Guerra Fria, esse clássico que moía mas não matava, tinhamos os piolhos (eu nunca fui afectado, por acaso) e algures lá no campo ainda se morria de tuberculose. A saída às seis da tarde era quase um acto religioso. Voltávamos para casa e era hora de desenhos animados, na velha TV a preto e branco na casa da avó, que ainda tinha o estabilizador (alguém se lembra o que é isso?), depois os TPC's, jantar, xixi, cama. Queriamos ser o Tom Sawyer, o Conan (aquele dos desenhos japoneses), o Flash Gordon. Hoje os miúdos querem ser os Transformers, o Wolverine ou o Cristiano Ronaldo.
Os fins-de-semana foram os melhores da minha vida. As brincadeiras na lezíria, as mãos cagadas de terra, as brincadeiras com os animais. Não havia a paranóia higiénica e sanitária de hoje. Brincávamos com os cães, com as minhocas, subiamos às árvores, e ninguém caía! Esfolávamos os joelhos e lá estavam pacientemente os pais ou os avós com os pensos, a água oxigenada e o mercúrio-cromo. Ninguém ia parar ao hospital por partir a cabeça ou cair da bicicleta. Eramos uns gajos mesmo rijos. Na TV (os dois únicos canais que havia) papávamos os programas de cinema e musicais, o saudoso Top Disco. Havia lá mp3, youtubes ou chatrooms. Nada disso. Queriamos falar com os amigos? Iamos a casa deles ou ao habitual lugar das brincadeiras. Muitos nem tinham telefone.
Cinema era só aos Domingos, e era preciso ser um filme mesmo especial, que o dinheiro não dava para tudo. Os DVD's eram uma quimera que nem os filmes de ficção científica conseguiam imaginar. Os discos de música eram comprados no Natal ou nos aniversários, e a discoteca (digna desse nome) mais próxima ficava a mais de 50 km de distância. O primeiro gajo que teve um leitor de CD lá no bairro deu uma festa lá em casa, e pessoas vinham de longe para ver. Os mais velhos deixavam sair um "Deus me livre" quando ouviam o preço. Os jornais desportivos eram lidos religiosamente, e os relatos ouvidos com atenção. Não havia forma de consultar o livescore.com ou saber os resultados no Record Online. Quem ia a Lisboa (como eu, por exemplo) tinha sempre mil e uma histórias para contar. Histórias de uma civilização distante e inalcançável. Quase um "sonho americano".
Comíamos de tudo. Não haviam McDonald's ou KFC, eram sandes de chouriço, torresmos ou pão com marmelada. E quem precisa de KFC quando havia uma churrascaria logo ao virar da esquina? Um dia apareceram os Mars, os Bountys ou os M&M's, que no fundo não faziam falta nenhuma. Tinhamos os chocolates da Aliança ou da Regina, ou os caramelos da Tofa. Não tinhamos as coisas que os miúdos hoje tanto gostam e dão como garantidas, mas não sentiamos falta, tinhamos coisas muito boas. A primeira vez que comi salmão tinha 17 anos, e a primeira vez que comi McDonald's foi em Hong Kong, já por estas bandas. A primeira vez que andei de avião tinha 17 anos, e hoje há muitos miúdos lá na EPM com 10 anos que andam de avião desde que nasceram, e quiçá mais vezes que eu próprio.
São mesmo diferentes, os miúdos de hoje. Mais moles, mais acomodados. No meu tempo ninguém era "obeso", era gordo. Não havia a desculpa de gastar a vista nos Playstations ou nos Sega mega-qualquer-coisa. Quem tinha óculos era o "quatro olhos". Não quer dizer que sejam melhores ou piores, são apenas diferentes. Quem sabe um dia vão ler este "documento" escrito por este "cota" e vão achar graça. E no futuro vão pensar o mesmo dos seus filhos, pois a evolução é uma coisa maravilhosa e imparável, por muito que custe a alguns aceitar. Agora vou-me deitar e esperar pelo que o Homem me vai trazer de novo amanhã, ou depois, ou um dia destes.
5 comentários:
"... As brincadeiras na lezíria..."
Não sei porquê mas tinha a idéia de que o Leocadio era de Ourém...
Originalmente. Os avós são de Salvaterra.
Cumprimentos.
Caro Leocardo,
Excelente post. Belas recordações de um belo tempo. E ir nadar para o rio? No meu caso ia-se a nado, na boa, até Espanha.
Um abraço e força.
"...as mãos cagadas de terra..."
e a boca cheia de merda, já agora...
Li recentemente uma conclusão científica que refere que as crianças metem tudo na boca, em resultado de milhares de anos de evolução (À grande Darwuin...).
Ou seja, essas bactérias e outras porcarias ingeridas pelas crianças ajudam a fortalecer o sistema imunológico...
O problema é que dos fracos não reza a história: isto é, por cada sobrevivente não se sabe quantos é que patinaram. Faz-me lembrar aquela constatação muitas vezes assumida: vai-se à terra e vêem-se os velhotes bêbedos e fumadores, que nos seus oitentas e noventas resistem ao chamamento da morte. Não se fala é dos muitos idos nos seus quarentas ou menos, a pagar factura devida pelos efeitos dos excessos no fígado, pulmões, garganta...
Bem dito.
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