sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Católicos sem humor


As queixas na ERC, Entidade Reguladora para a Comunicação, contra a sátira dos «Gato Fedorento» ao computador Magalhães chegaram ontem às 50.

«Nunca um programa, no caso, um sketche, recebeu um tão elevado número de cartas a contestá-lo», disse fonte da Entidade Reguladora ao Jornal de Notícias.

As queixas em relação à sátira feita ao computador Magalhães são todas no mesmo sentido: ofensa à Igreja Católica, mais concretamente, ao seus símbolos sagrados.

O sketche 'Louvado sejas, ó Magalhães' imita os rituais da missa, incluindo a entrega da hóstia pelo personagem de Ricardo Araújo Pereira, que na sátira substituí a expressão «Corpo de Deus» por «disco de Instalação».

É neste cenário que se ouve, ainda, um discurso que elogia o computador. Numa das falas, é dito: «Bendito seja Sócrates que nos reuniu em nome do Magalhães».


In Jornal Sol

Estamos de parabéns. Somos provavelmente o único país da UE e um dos poucos do mundo em que ainda se vive na idade das trevas. Imaginem só que bom que isto vai ser para o turismo. Esqueçam lá as crucificações na Páscoa em San Fernando, Pampanga, nas Filipinas. Venham a Portugal ver a fogueira da inquisição queimar os blasfemos, possuídos pelo demo que se atrevem a brincar com as mui sagradas instituições religiosas. Já estou a aprender português arcaico e a tocar o alaúde. Mal posso esperar pela Peste Negra. Viva El-Rei.

Este sketch dos Gato Fedorento, que nada tem de mal, não ofende ninguém, não menciona o nome de Deus ou sequer qualquer outro elemento da santíssima Trindade, tem recebido imensas queixas, pois. Queixas de gente que não tem absolutamente nada que fazer. Podia dar aqui o meu habitual sermão sobre a conveniência de mudar de canal cada vez que passa qualquer coisa de que não se gosta, mas nos dias que correm a curiosidade mórbida e a vontade de falar mal tomou conta de tudo e todos.

Lembram-se em 1991 quando passou na RTP2 aquele filme japonês, O Império dos Sentidos? Foi um escândalo, toda a gente viu. Com que então pornografia, seus malandrecos. O clero português ficou irado. Viu o filme com redobrada atenção, quiçá gravou (como prova, pensam o quê?) e bateu com o pé. Mudar de canal nunca foi opção. Lembram-se quando um tal deputado de nome Sousa Lara se insurgiu contra o "Evangelho" de José Saramago, que levou o escritor a emigrar e tudo? Saramago é uma referência e até ganhou o Nobel. De Sousa Lara nunca mais se ouviu falar.

Gostava de poder acreditar que não somos um país de beatos e beatas (designações que em outros países tem uma conotação positiva), mas sinceramente começa a faltar pachorra. Já não basta a hipocrisia de sermos um país em que já quase ninguém vai à Igreja, que baptizam os filhos (não lhes dando qualquer escolha) "por tradição", como agora temos que levar com as virgens ofendidas a condenar uma paródia ao computador Magalhães. Nada a ver com a Igreja. É sobre o Magalhães!

Ele há coisas "com que não se pode brincar": igrejas, cemitérios, santos, romarias, e mesmo os tais dogmas que carecem de ser comprovados cientificamente. Se fosse uma piadola racista, machista ou ordinária já não fazia mal nenhum. E não fazia, cada um tem a liberdade de achar graça ao que quiser. O cardeal Cerejeira, a muleta clerical do Estado Novo, deve estar a dar barrigadas de riso onde quer que esteja. Ainda somos um país atolado na lama do "respeitinho é muito bonito", que inconscientemente advoga a pérfida censura.

Imaginem só esta notícia traduzida para outras línguas. O que vão pensar os holandeses, ingleses, franceses, ou até os espanhóis, católicos ferverosos que elegeram um Governo socialista que legalizou o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo como quem bebe um copo de água? Ou mesmo os irlandeses, muito mais praticantes que nós, mas ao mesmo tempo dotados de um extraórdinário sentido de humor? Isto para mim é uma autêntica vergonha.

Sou completamente pela liberdade de culto, mas cada coisa no seu lugar. Os políticos no Governo, os professores na escola, os padres na Igreja e os humoristas na televisão. E liberdade para todos exercerem o seu ofício. O pior é que existem pessoas que advogam a liberdade de culto, mas apenas do seu culto, enquanto espezinham outras liberdades. Se está na moda dizer que se calhar Marx tinha razão graças à recente crise dos mercados financeiros, quase me apetece também dizer que Mao tinha razão quando afirmou: "a religião é um veneno".

Mas isto não me surpreende, vindo de gente que se contradiz, acreditando na misericórdia infinita de Deus, mas ao mesmo tempo acreditando que os pecadores vão arder nas chamas do Inferno. Eu pessoalmente acredito que Jesus era um homem bom, e como todos os homens bons, dotado de um sentido de humor especial. O que pensaria Ele de tudo isto? Do resto não me perguntem. Reduzo-me à minha insignificante existência para me abster de responder a questões do âmbito do sobrenatural. E mais não digo.

11 comentários:

Anónimo disse...

Ou a rábula do Herman com a ceia de Cristo. Infelizmente exemplos de intolerância não faltam.

Anónimo disse...

Leocardo, desculpe que lhe diga, mas 50 queixas são alguma coisa?? Se calhar a grande maioria até veio de elementos da própria igreja.

Isto a mim parece-me mais um caso de empolamento da imprensa para criar uma nova polémica, depois da anterior (casamentos homosexuais) já estar gasta.

E com isto lá teremos mais um tema para expremer durante mais uma semaninha ou duas, incluindo os comentários do Marcelo, um programa dos prós e contras para debater o tema, vários editoriais sobre o assunto nos jornais e revistas, etc...

E neste caso dos Gatos Fedorentos, a RTP até agradece a publicidade gratuita.

Leocardo disse...

Pois é, anónimo. O pior é que estas 50 pessoas (agora mais, se calhar) representam provavelmente centenas, senão milhares de pessoas que ficaram indignadas. Repare que não é um agricultor transmontano ou uma varina beirã que se mexem para apresentar queixa à ERC.

Os que se queixaram são, presumo, pessoas bem informadas e com o mínimo de cultura, e isso é que é grave. Em Macau penso que uma coisa assim seria um escândalo; por exemplo aqui em casa a minha mulher, que é católica e não percebe metade do que os Gatos dizem, considerou isto também um insulto. Bastou-lhe ver o vídeo. Isto é o que se chama "dormir com o inimigo" ;)

Em todo o caso aproveitei este incidente para epressar algumas opiniões que andava para manifestar há á algum tempo. E já agora, quanto à publicidade gratuita, os Gatos estão na SIC.

Cumprimentos

VICI disse...

Caro Leocardo,

Apesar da concordância com uma boa parte do post e comentários, gostava de dizer o seguinte:

a) Cabe apenas àqueles que verdadeiramente acreditam na religião que professam analisar se o sketch é ofensivo. Se querem que vos diga, objectivamente, parece-me que é passível de ser visto dessas forma.
b) Quando alguém se sente ofendido, deve manifestar o seu desagrado. Foi o que essas 50 pessoas fizeram. Nada de mais.
c) Criticar os outros por manifestar a sua opinião é que me parece pouco salutar. Criticar a exteriorização de pontos de vista, porque é disso que se trata e não de homens-bomba, é que é uma intolerância.

Grande abraço!

Anónimo disse...

Vici,

Nem mais. Concordo que o Leocardo tenha o direito a expressar a sua opinião e a estar indignado. Mas, tal como ele, foi isso que fizeram 50 pessoas que viram e não gostaram. E têm todo o direito a não gostar e expressá-lo. Viver na idade das trevas seria limitar o direito à indignação independentemente de credo, cultura ou origem social. Como referia o Leocardo se os católicos não gostaram deviam ter mudado de canal. A mesma coisa devia ter feito o Leocardo quando leu a notícia. Devia ter aberto a outra página na internet.

Leocardo disse...

Só que enquanto eu mundando a página da notícia a "indignação" continuava, os senhores mudando de canal nunca ficariam indignados. Foi o exemplo que dei com "O Império dos Sentidos", viram tudinho até ao fim para "medir" a "indignação". Abraço ao VICI e aos outros.

Anónimo disse...

Eu até aposto que as pessoas que ficaram indignadas são as mesmas que criticaram os islâmicos pela sua indignação e consequente onda de violência por causa dos cartoons do Jylland. O que estas pessoas que apresentaram queixa pretendem é que os autores desta paródia sejam castigados. O que eles querem é o regresso da censura, só que vivemos num estado laico e democrático e, paciência, não pode ser nada. E olhem que até me chamo Cruz...

Anónimo disse...

Eu não concordo que se humilhe os símbolos sagrados de uma religião que está indissoluvelmente ligada ao nosso país e à nossa cultura. As pessoas indignaram-se e protestaram, não ameaçaram ninguém de morte nem lançaram nenhuma excumunhão. Isto não tem nada a ver com intolerância. O primeiro anónimo e, desculpe, o Leocardo estão a abusar da palavra. Intolerância é a Inquisição, o Comunismo, o Nazismo, a Pide, a Stasi, a KGB,...e certas pedagogias modernas.

Leocardo disse...

O problema aqui, Raul, é que ninguém humilhou nenhuns símbolos sagrados. A não ser que o computador Magalhães se tenha tornado algum objecto de culto. No momento em que deixarmos de ter sentido de humor, mesmo no que toca à religião, que é parte da nossa sociedade, não somos melhor que os talibãs ou qualquer outro grupo extremista. Olhe, o que diria se um grupo de pessoas que não são católicos exigisse a proibição da Igreja Católica por causa dos inúmeros escândalos de pedofilia? E acha bem o que se tem passado na India só porque "a maioria" professa outra religião? Ou mesmo na China, onde a igreja Católica-romana não é autorizada? As pessoas têm o direito de manifestar a sua indignação, pois claro. Mas neste caso é meio caminho andado para a intolerância e até violência.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Há muitos católicos que gostavam que voltasse a sua querida Inquisição. Talvez lhes fosse mais fácil mudar de religião do que de canal. Assim sendo, por que é que não se tornam muçulmanos e não enchem o corpo de explosivos? Eu sei o que Jesus (que é uma figura que não tem nada a ver com o catolicismo e que o repudiaria se essa igreja se tivesse constituído durante a sua vida) diria: "Cambada de palhaços!". Basta analisar todas as violências a que o catolicismo se dedicou durante centenas de anos e saber mais ou menos algo sobre a personalidade de Jesus para saber que são incompatíveis e que a igreja católica usurpou a figura de Jesus como se este alguma vez pudesse aprovar os crimes e a censura exercidos por aquela.

Anónimo disse...

Será que é António de Sousa Lara? Se o for, então ele não anda necessariamente desaparecido. Há uns meses atrás foi meu professor e ainda continua a passear pelos corredores da minha faculdade. :)