quinta-feira, 29 de maio de 2014

Autópsia de uma morte anunciada


A polémica da lei do Regime de Garantias aos titulares dos principais cargos públicos caíu finalmente, com o anúncio esta manhã da suspensão da votação da proposta na especialidade, mandando o diploma para consulta pública. Quem estava contra esta lei que considera justa e desadequada sente-se vitorioso, e o Executivo poderia evitado o embaraço, não fosse tanta a hesitação que o levou a esperar que as hostes se acalmassem - quando era mais que óbvio que não se isso nunca iria acontecer. A sensação que ficou no rescaldo dos protestos que se têm feito escutar contra o diploma na última semana, com os pontos altos nas manifestações de Domingo e terça-feira, quem é que saíu reluzente, e quem saíu "queimado"? Ou ainda quem podia ter ficado mais bem visto mas perdeu uma boa oportunidade, e quem se safou de boa de um "castigo" pior? Vamos ver.



OFUSCANTE


Quem sai a cintilar de tudo isto é a população de Macau, essa entidade colectiva e anónima que teima em permanecer silenciosa nas alturas em que talvez fosse mais sensato "partir a loiça", mas desta vez disse "presente", e demonstrou que está atenta, e que não pensem em fazer dela gato-sapato. Para conseguir esta importante vitória, contaram com o auxílio das redes sociais, que também ficam fortalecidas com o desfecho dos acontecimentos dos últimos dias, e provam que através da facilidade com que fazem chegar a informação a qualquer parte, e à sua capacidade de mobilizar as massas e permitir juntar milhares de pessoas em apenas poucos minutos, ao mesmo tempo que estimula a criatividade e o espírito críticos dos seus utilizadores. Só é pena que em Macau as telecomunicações estejam na mão do poder instituído, e que tentem limitar as capacidades deste precioso e tão útil instrumento de informação e partilha, tentando instrumentizá-lo - só nos resta tentar impedir que isso aconteça, e tal como neste episódio com final feliz, bater o pé e dizer "não". Tiro a ambos, residentes de Macau e cibernautas o meu chapéu, estão de parabéns.


Sulu Sou, nesta imagem a comer algodão-doce é ainda sem a sua característica barbicha, foi um dos grandes vencedores individuais desta contenda, se é que podemos pôr as coisas nestes termos. Foi interessante vê-lo ali de megafone em punho, ou ainda de braço levantado, gritando palavras de ordem e incentivando os manifestantes, sempre de forma pacífica. Representando a Associação Consciência Macau, que fundou juntamente com Jason Chao, soube estar, não se acanhou nem se deixou levar pelo protagonismo, e parece ter também uma empatia com as câmaras - é estético, o moço. Sulu é um recém-licenciado, de 25 anos, que em de Setembro de 2013 concorreu às eleições para a AL como nº 2 da lista da Associação Novo Macau, encabeçada por Au Kam San, e já na altura tinha-se revelado uma boa surpresa. Sendo já uma promessa da política local, vamos ver se com o amadurecimento se confirmará como uma certeza. Um bom exemplo do que devia ser a juventude em Macau: mais interessada, atenta e participativa.


Dizem que "quem sabe nunca esquece", e esta máxima pode-se aplicar na perfeição ao deputado Ng Kuok Cheong, que se saíu muito bem na sua função de combate à proposta de lei dentro da própria AL. Ao recusar-se a assinar a versão final do diploma a que se opôs desde a primeira hora, ao mesmo tempo que se mostrou sempre em sintonia com o seu colega de bancada Au Kam San, passando o "vírus" da incoerência de que por vezes são acusados para outros personagens deste "filme". O veterano deputado de outras lutas mostrou ainda estar para durar, pelo menos para esta legislatura, e quem sabe para uma próxima (Ng terá 60 anos em 2017, data das próximas eleições). Sem dúvida que o Novo Macau ganhou pontos, o que vem mesmo a calhar depois da derrota nas urnas em Setembro do ano passado, onde a associação começou a acusar um certo desgaste.


Esta foi sem dúvida uma semana agitada para os politólogos, "opinion-makers" e afins, com todos a querem meter a sua colher opinativa no pudim da contestação. Gostei de alguns comentários que ouvi (pela primeira vez senti-me em sintonia com o economista Albano Martins, que esteve esta noite no Telejornal), gostei menos de outros, mas para mim que se destacou foi Eilo Yu, professor da Universidade de Macau. Apesar de ser ainda um jovem - pelo menos aparenta - mostrou uma perspicácia que não é comum ver em Macau, primando pela concisão e pela forma directa com que analisou a crise. Teve ainda o mérito de colocar o dedo na ferida, trazendo para a mesa de debate a possibilidade de Pequim reconsiderar o apoio ao Chefe do Executivo, uma hipótese que muito boa gente terá pensado, mas que ele teve a coragem de lançar na discussão. Mais uma cabecinha pensadora que devia servir de exemplo às gerações futueras da RAEM, mesmo tendo em conta que se trata de um académico.




INTERMITENTE


A metade (maior?) do grupo Consciência Macau, ao lado de Sulu Sou, Jason Chao voltou a chamar a si o protagonismo deste protesto, reclamando vitória após o Chefe do Executivo ter finalmente cedido e recuado na votação diploma. Jason Chao sai satisfeito e confiante, mas a sua imagem parece definitivamente desgastada. Muitos dos participantes nas manifestações de Domingo e de terça-feira não reconhecem nele um líder, e alguns acusam-no mesmo que querer chamar a si o protagonismo. Jason Chao, que admiro e reconheço mérito e coragem, tem como único senão o seu lado "radical", do "rebelde sem causa", que critica sem propôr alternativas, quem destrói sem fazer planos de reconstruir. Talvez um ou dois tons abaixo na sua verve contestatária e alguma participação no debate de ideias em vez de se limitar à confrontação quando toca aos temas fracturantes lhe tragam um pouco mais de carisma.


José Pereira Coutinho cantou vitória após o recuo do Executivo em votar a lei, disparou em todas as direcções, e aproveitou para atacar mais uma vez o seu ódio de estimação, a secretária Florinda Chan. Se perguntamos a Coutinho o que pensa desta proposta de lei, ele diz-nos que "não serve para cortar às tiras, metê-la num rolo e pendurá-la na sede da ATFPM". Deixou isto bem claro, e até se saiu bem no departamento da teatralidade. Agora a pergunta que se impõe: porque é que em 16 de Dezembro do ano passado, quando a lei foi votada na generalidade, Pereira Coutinho votou contra, mas o seu nº 2 Leong Veng Chai votou a favor? Penso que aqui nem sequer se pode usar como desculpa qualquer tipo de "liberdade de voto", uma vez que o deputado da Nova Esperança deixa bem claro que esta lei não presta, e que só passaria por cima do seu cadáver. Então para que serve à Nova Esperança ter lá um segundo deputado a "atrapalhar" o primeiro? Uma pergunta que deixa os eleitores de Pereira Coutinho na dúvida, e à qual só ele poderá responder.


Florinda Chan sai estranhamente imaculada de todo este processo, e por duas razões: primeiro porque qualquer tipo de legislação tem com toda a certeza o dedo da secretaria para a Administração e Justiça, que ela dirige, e diz-se por aí mais ou menos com algum grau de certeza que esta lei foi feita à medida para ela. Contudo não se viu qualquer ataque especialmente focalizado na secretária - e na hora de se "contestar" ela costuma ser habitualmente um dos alvos predilectos - e mesmo nas redes sociais escapou apenas com uma ou duas "bocas foleiras". Valeu a pena abrigar-se atrás da larga moldura do Chefe do Executivo, que levou sozinho com a "fruta podre" que estava destinada para os dois.


Uma adição de última hora ao elenco deste "filme" é Chan Hong, deputada da AL nomeada pelo Chefe do Executivo, e vice-directora da Escola Hou Kong, que é conhecida por administrar o ensino de matriz "patriótica", e que se coloca incondicionalmente do lado do poder, e acima do tudo acata com uma obediência cega qualquer directiva emanada por Pequim. A polémica com a deputada tem a ver com a manifestação da última terça-feira, onde alegadamente terão participado alguns alunos da Escola Secundária de que é responsável, e que ostentavam o uniforme escolar, além de um cartaz onde se lia "Vergonha da Hou Kong". Os alunos terão sido advertidos verbalmente, e segundo a imprensa um deles alega ter-lhe sido dito que a sua conduta teria reflexo nas notas. Chan Hong defende-se dizendo que tudo o que quis foi saber se por "Vergonha da Hou Kong" se referiam à escola, ou à cidade de Macau, uma vez que "Hou Kong" é um dos nomes pelo qual o território é conhecido entre os chineses. A deputada fica com o benefício da dúvida, pois se de facto se confirma que os alunos participaram da manifestação trajando com o uniforme da Hou Kong, agiram mal, e por outro lado o caso foi denunciado não pelos próprios alunos, mas por um ex-aluno actualmente a estudar em Taiwan. São muitas "tabelas" para se poder dizer que a bola entrou, e com os ânimos exaltados, é fácil acusar sem provas concretas.



APAGADO


Chui Sai On é quem mais fica prejudicado em termos de imagem com esta "telenovela" da lei das garantias para os titulares dos principais cargos públicos. Como já tinha dito ontem, parece-me que ao CE falta algum apoio em forma de aconselhamento que lhe permita não tomar algumas decisões, que parecem ser tomadas de forma irreflectida e impulsiva. Se isto vai afectar o resto do seu mandato? Claro que não, pois para todos os efeitos vai continuar a ser "o chefe", e afinal faltam poucos meses para o fim do mandato. Pequim poderá mesmo ponderar uma alternativa a Chui Sai On, que se assim vê em risco uma reeleição que parecia praticamente assegurada? Talvez, mas isso só Pequim poderá responder, e pode ainda depender de jogadas de bastidores, daquilo que Pequim e CE tiverem para discutir, e que só a eles diz respeito. Se a sua autoridade ficou em cheque? Isso com toda a certeza. Depois deste incidente que termina com o Executivo a dar a mão à palmatória, a posição de Chui Sai On fica fragilizada: os críticos vão ficar atentos ao mínimo dos deslizes, e não poderá mais contar com a bonomia da opinião pública. Mas pode usar isso a seu favor, porque não? É só mostrar que pode e que sabe fazer melhor.


Muito má, a imagem deixada pelo vice-presidente da AL, Lam Heong Sang, que se comportou como aquilo que hoje em dia é designado por "bully". Pior do que isso. Ao confrontar um jornalista que lhe fez uma pergunta - e estava apenas a fazer o seu trabalho, no fundo - Lam respondeu mal, e ao mesmo tempo que revelou uma enorme falta de "chá", personalizou o desconforto que se sentia entre a legislatura perante a aprovação desta lei. Se o sr. Lam Heong Sang pensa que toda a gente tem mais é que respeitar as decisões do Executivo e não tem sequer voto na matéria, porque para isso estão lá ele e os seus amigos, então nunca deveria ocupar o cargo de vice-presidente da AL. Agora ficámos a perceber porque é que o seu desempenho como deputado tem sido tão discreto.


Quem também sai desta trapalhada a "andar à caranguejo" é o deputado Chan Chak Mo, que presidiu à 2ª Comissão da AL, a tal que redigiu a infame lei, e que a vê agora ser retirada - em suma, o deputado Chan Chak Mo fez um mau trabalho. O pior foi a sua atitude perante a evidente insatisfação com o diploma, e da forma como deu a entender, mesmo através da imprensa, que "quer gostem ou não da proposta, ela vai passar na mesma, e vocês comem caladinhos". Mas não "comeram", e pelos vistos há mesmo quem queira provar nem da lei, nem de mais nada vindo do sr. deputado Chan Chak Mo. Corre há alguns dias nas redes sociais uma petição, o um apelo, se preferirem, a que se boicotem os restaurantes da cadeia "Future Bright", de que o deputado é proprietário em 45%. Chan Chak Mo diz "não entender" esta iniciativa, e lamenta que se misturem as suas funções de deputado com as de empresário. Hmmm...e eu que sempre pensei que a única razão porque Chan Chak Mo é deputado é devido ao facto de ser empresário, e como tal é eleito pela via directa, dos interesses empresariais, desportivos e culturais (ignorem as últimas duas, que aquilo é treta). Mas numa coisa ele tem razão: o empresário Chan Chak Mo não é a mesma coisa que o deputado Chan Chak Mo. Consegue ser ainda pior!


O advogado e deputado Leonel Alves é uma figura que muito estimo, e é com pena que o vejo a fazer o papel de "apaga-fogos" deste Executivo. Primeiro foi chamado a justificar o facto do antigo CE, Edmund Ho, ser dispensado como testemunha do caso Ao Man Long, e mais tarde, num incidente relacionado com o mesmo caso do ex-secretário condenado a 30 anos de prisão, veio apregoar a inocência de Susana Chao no caso da CSR, a companhia de tratamento de resíduos que a ex-presidente da AL se "esqueceu" ter tido em tempos parte como sócia maioritária. Na hora de revestir qualquer coisa que não parece lá muito lícita de uma capa de legalidade, chamam o "Neco", que indiscutivelmente é um homem de Direito. Só que aqui espalhou-se completamente ao comprido, e nem dizer que ficou a "pregar aos peixinhos" chega para ilustrar o cavaleiro da triste figura que acabou por ser, defendendo com unhas e dentes uma proposta que simplesmente não tinha defesa possível. Se a Chan Hong ainda dou o benefício da dúvida, no que diz respeito a Leonel Alves ficaram dissipadas quaisquer dúvidas quanto ao lado de que está. E lamento que esteja desse lado, tão mal acompanhado.


E decidi deixar para o fim a mais reles das criaturas: o deputado Mak Soi Kun, que é uma daquelas pessoas que não faz falta nem em Macau, nem em parte alguma. O deputado cuja lista União Macau-Guangdong foi a segunda mais votada das últimas eleições, muito à custa de aliciar velhos ignorantes e o outros ignorantes não necessariamente velhos a votarem neles em troco de comida (?), é a figura de proa da Associação dos Conterrâneos de Jiangmen, ou "Kong Mun" na sua versão em cantonês - uma daquelas associações de cariz regional a que não devia ser permitida actividade política devido à sua natureza tendencialmente bairrista. Ora esta tal associação organizou no Domingo passado uma contra-manifestação àquela que se opôs ao diploma, e pagou 500 patacas aos tais velhos ignorantes para irem fazer número, desconhecendo sequer a natureza do protesto de que participavam. De louvar o trabalho da imprensa chinesa, nomeadamente o canal Ou Mun da TDM, que desmascarou a farsa com uma facilidade tal que pareciam estar a tirar do caminho teias de aranha.
Hoje, inquirido sobre esse tema, Mak Soi Kun delegou responsabilidades para o "presidente da associação" - faz todo o sentido, pois uma vez que estando a exercer o cargo de deputado, Mak atribuiu essas funções para um dos seus "cavalos". O que me incomoda é ele querer insinuar que não teve nada a ver com a iniciativa, e querer fazer-nos a todos de parvos, ou idiotas. Enfim, como ele próprio. Está sozinho e precisa de companhia, coitadinho.

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