terça-feira, 7 de junho de 2011

A "Cúnfia"


Na sua coluna "A Causa das Coisas", no DL, Miguel Esteves Cardoso falou uma vez da "cúnfia", referindo-se aos políticos em particular e às pessoas em geral que gostam de tratar toda a gente por "tu". Por acaso não gosto que alguém que não me conhece de lado nenhum me trate por "tu", e normalmente isso significa que o indivíduo faz uma má primeira impressão em mim, e como se sabe as primeiras impressões só se fazem uma vez (pois...). Trato quase toda a gente por "você", e guardo os "tu" e os "ó tu que fumas" para a família mais próxima e amigos de infância - do tempo em que não sabia que tratar alguém por "tu" é má educação.

Pior mesmo que ser assaltado com um "tu" de um desconhecido, é ter o bedelho alheio enfiado constantemente na nossa vida. Falo obviamente da desvantagem de ser um (o único?) indivíduo ocidental a morar num prédio de asiáticos, 99% deles chineses. Tento sempre ser um bom vizinho, não faço barulho às duas da manhã, não queimo papéis votivos cujo fumo arde nos olhos dos meus vizinhos, não ando semi-nu no meu andar quando vou deitar o lixo fora, bem, penso que estão a ver o tipo de vizinhos que tenho. É reconfortante chegar a casa às sete da tarde e sentir o cheiro intenso a fu kwa, uma espécie de melão amargo muito popular em sopas e guisados chineses, que para quem conhece, cheira a peidos podres.

Apesar de conhecer a maioria deles mais ou menos bem e até troco dois dedos de conversa, dentro do possível, outros há que gostam de meter o nariz onde não são chamados. É tradição aqui em casa pelo menos uma vez por mês deitar fora os sacos de plástico, caixas de cartão, jornais, recibos um ou outro casaco, mala ou par de sapatos. Parecendo que não, é uma quantidade considerável de lixo. Só que em vez de o deixar aqui perto do elevador, como faço com todo o outro lixo, preciso de andar até à rua e deitar no "lixão" mais próximo. Porquê? Porque senão vão ver, revolver, procurar qualquer coisa que lhes interesse! Quando mudei para aqui e a minha mulher me disse isto, não quis acreditar. Até ver com os meus próprios olhos, é claro.

Tenho um amigo - um outro estrangeiro - que vive três andares abaixo de mim, e tenho parentes da minha mulher a viver num dos andares baixos do edifício. Quando visito um deles, os vizinhos desse andar olham para mim como se fosse um bicho. Uma das vezes que visitei este meu amigo desci pela escada, para ganhar tempo, e pelo caminho encontrei um gajo que nunca vi na vida que me atira com um sonoro: "Uah! O que estás aqui a fazer???". Olhei para ele de soslaio e atirei-lhe com um "e tu? mete-te na tua vida, palhaço!", isto para não lhe partir os dentes pelo desaforo. Quando vou com a família ao terraço ver os fogos de artifício, somos o centro das atenções, e já ouvimos em surdina comentários do tipo "falam uma língua estranha", entre outras simpatias.

A gente habitua-se a ser o centro das atenções, mas isso não quer dizer que passemos a gostar. Uma vez apanhei o elevador para o andar onde vivem estes meus familiares, e pelo caminho entrou uma senhora com o filho, que reconhecendo-me imediatamente, perguntou-me logo "ah tu vais para o andar tal, mas não vives no andar tal e tal?". Respondi-lhe então que sim, mas que "a minha amante vivia naquele andar", o que a deixou um pouco com cara daquilo que realmente é: parva. Para estes meus vizinhos, se algum dia houver uma notícia de um suicídio, homicídio ou outro caso de polícia no meu andar, vou estar sempre na cabeça da lista de apostas como a parte envolvida.

Um pouco por toda a rua anda esta "cúnfia" tão particular; ora na padaria, onde toda a gente sabe onde vivo e não se inibem de fazer comentários em voz alta, pensando que não percebo uma palavra, ora na mercearia aqui perto de casa, onde me perguntam sempre como vão as mulheres e os filhos, e o gajo do supermercado tem a mania de me ir buscar as compras às prateleiras, sabendo já de antemão o que vou comprar. Grande porra, eu sei ir buscar os sumóis e os ginger-ales sozinho! Isto até pode parecer apenas uma saudável forma de vizinhança, mas parece muitas vezes a Stasi alemã, de tão perto que me sinto observado, catalogado, registado.

Só para ilustrar com um exemplo: no fim-de-semana passado a minha vizinha do lado discutia aos berros com o namorado, e atirava-lhe objectos que causavam ruído devido ao impacto com a parede e com o chão. Toquei-lhes duas vezes à campaínha e pedi-lhes educadamente que não fizessem barulho, pois eram oito da manhã de Domingo, e havia pessoas a tentar dormir. Pediram desculpa e cessaram o barulho, para gaúdio dos meus pobres ouvidos. A minha mulher comentou neste episódio dizendo: "Dão-te cara só porque és estrangeiro. Se fosses chinês gritavam ainda mais alto contigo". Pois é, é assim que eu gostava de ser tratado pelo menos uma vez: normalmente.

8 comentários:

Pedro Coimbra disse...

A crónica do Esteves Cardoso, que tenho ainda vivída na memória, falava no "tutear".
Temos o mesmo problema - alguém que não conheço tratar-me por tu?
Só se for brasileiro porque eles usam o tu como nós usamos o você.
De outro modo, cai-me muito mal.
E também não me ponho a tratar quem não conheço por tu.
Educação, civismo e os necessários dez metros de confiança.

Anónimo disse...

Como é que é essa de os brasileiros usarem o "tu" como nós o "você"? Há aí engano, Pedro Coimbra. Não será antes ao contrário, usando eles o "você" onde nós usamos o "tu"?

Anónimo disse...

É extraordinário ver o alguém que passa os tempos livres a falar de outros e da sua vida queixar-se que o pior "é ter o bedelho alheio enfiado constantemente na nossa vida". Brilhante.

Leocardo disse...

Ai passo o tempo a falar "da vida dos outros e da minha". Interessante. Falei de alguma coisa que não gostou? Ou que anda a tentar esconder? É malandreco ou sacaninha? Olhe, antes eu que a polícia.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Porra, além não saber escrever agora não sabe ler. Ao menos é coerente e faz o pleno. Olhe lá, onde é que eu escrevi "da vida dos outros e da minha"? eu escrevi "a falar de outros e da sua vida".

Cumprimentos,

Anónimo disse...

Não altera uma vírgula à minha resposta.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Leocardo, tu foste ao cyber café só para me responder? Porra, espero que tu me desculpes ter feito com que tu perdesses parte da tua hora de almoço.

Olha, tu sabes dizer se as aspas que, na gramática portuguesa mas talvez não na tua, servem para indicar a reprodução literal de um texto - que tu não escreveste aqui - alteram ou não uma vírgula à tua resposta? Agradecido.

Cumprimentos aos teus.

Pedro Coimbra disse...

Anónimo das 18:42,
As duas coisas.
Tem toda a razão.