quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Soares


Mário Soares foi internado de urgência na passada 3ª feira, chegou a temer-se o pior  (sobretudo para ele, entenda-se), e ao fim do dia de quarta feira, o seu estado de saúde - ou ausência desta - "estabilizou" e o prognóstico "é reservado". Tudo isto trocado por miúdos quer dizer "ainda não se sabe se é desta". Houve quem, julgando estar o histórico líder socialista mais para lá do que para cá, tenha antecipadamente urdido considerações diversas sobre o que representou Mário Soares para o Portugal moderno e para a nossa democracia - em boa hora, acrescento eu. Foi necessário o homem chegar ao seu limite para se comentar o político, esse já há muito com certidão de óbito passada.

E é por isso que é bom falar de Mário Soares enquanto ainda anda por cá, antes que a "esquerda de rapina" de que ele foi figura de proa imponha a "lei da rolha" com o pretexto do "respeito pela memória dos defuntos". Uma coisa que eu sempre soube sobre Mário Soares melhor que muita gente foi a sua idade exacta - nasci no dia em que Soares completou meio século de vida, e a partir daqui as contas ficam mais facilitadas: no passado dia 7 de Dezembro o apregoado "pai da democracia" comemorou (discretamente, suponho) 92 anos de vida. Até nisto conseguiu bater um dos seus mais conhecidos adversários políticos, Álvaro Cunhal, que não passou dos 91. Olhem que sim, caros leitores, olhem que sim.

Nascido em Lisboa em 1924, Mário Alberto Nobre Lopes Soares é o segundo filho de João Lopes Soares, um ex-sacerdote e pedagogo que exerceu vários cargos políticos durante a I República, acabando vetado ao ostracismo em 1930 por Salazar, depois de ter ocupado por um curto período de tempo a pasta de Ministro das Colónias. Pode-se dizer que foi "em nome do pai" que o jovem Mário Soares encontrou o seu primeiro adversário político, o próprio Salazar, de quem se assumiu como oposição a partir dos anos 50, já com formação académica obtida na área do Direito, e praticando a advocacia. O Estado Novo não o deixou colocar o pé em ramo verde, e depois de ter estado detido e exilado em S. Tomé e Príncipe, o marcelismo permitiu-lhe a vinda para França, onde fundou o Partido Socialista Português, e com o evento do 25 de Abril o regresso a Portugal, onde foi recebido como potencial "salvador da Pátria".

Ocupando desde logo a pasta das Colónias, como tinha feito o seu pai antes da sua família cair em desgraça politicamente, Mário Soares tinha em mãos uma tarefa complicada: pôr termo à Guerra Colonial e restaurar a credibilidade do país, vetado ao isolamento no plano internacional por culpa da recusa de Salazar em proceder à descolonização. Soares resolveu então fazer em dias aquilo que bem feito poderia demorar vários anos a levar a bom termo, e retirou das antigas províncias ultramarinas portuguesas, deixando-as entregues aos movimentos independistas. Como resultado deste equívoco tido como "inevitável", dezenas de milhar de portugueses naturais de Angola e Moçambique acabariam refugiados em Portugal, onde muitos não tinham sequer um familiar a quem recorrer a ajuda. São os "retornados", pessoas a quem ainda hoje a figura de Soares inspira ressentimento e desprezo.

No plano interno Soares foi chefe do governo em duas ocasiões, e em 1985 chegou a Presidente da República, cargo para o qual seria reeleito até 1995, altura em que a sua retirada da vida política seria o ideal, mas em vez disso preferiu eternizar-se como referência daquilo que ele próprio designou de "esquerda democrática". Voltou a concorrer às presidenciais em 2006, já com 81 anos, e ao invés do político que travou lutas contra Cunhal,  Sá Carneiro, Eanes e finalmente Cavaco Silva, saindo sempre vencedor, passámos a ter o "zombie Soares", uma figura flácida de discurso errático com pronúncia esclerosada que em nada dignifica aquilo que foi o seu passado - quer se goste dele ou não.

Depois do recente desaparecimento da sua esposa e companheira de luta, Maria Barroso, Mário Soares prepara-se agora para se reunir com ela, encerrando assim um ciclo da política e da própria História de Portugal  (porque não?), e se há algo que eu gostaria de lhe conferir era o benefício da dúvida. Seria o que eu faria, tivesse aquele a quem a seu segundo consulado em Belém foi equiparado "ao de um monarca" limitado-se a cumprir o seu papel, optando depois por uma saída graciosa. A impressão que deixou nestes últimos anos só me levam a concluir uma coisa: se combateu o regime de Salazar e a ditadura, foi porque esta se calhar não lhe dava tanto "jeito". E de Mário Soares, hoje com 92 anos e oito dias de idade, é só o que tenho para dizer.

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