sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Nero incendeia Macau


O ZÉNITE nas corridas de touros em Espanha é a morte da besta pelo toureiro. Na arena, a sapiência e o irracional dançam ao som da fanfarra, envolta num mar encarnado. O povo exulta de paixão. Um espectáculo próximo dos vividos no Coliseu romano. E do pedestal, hoje o Rei, tal como ontem Nero, a ver Roma a arder.

A «res publica» há muito se transformou numa arena. Aqui e ali, os Neros vão proliferando, incendiando a paz social e aproveitando-se da dor do inimigo, de quem a morte se vem apoderando dia-após-dia.

Por culpa própria – ou não – as estocadas deixaram feridas impossíveis de sarar. Até à entrada dos campinos, resta agora sobreviver à sombra de paliativos, na esperança de que o próximo espectáculo venha a ser menos viril.

Tal como as praças de touros, a «coisa pública» serve para entreter os menores, alimentando-lhes a agressividade e o prazer do domínio sobre os demais, os indefesos. Em tauromaquia, chamo-lhe faena. Em política, chamo-lhe revolução.

Na realidade, as mutações sofridas pela «res publica», desde 1999, transformaram-na em combustível, pronto a ser usado pelos revolucionários; pelos tais Neros famintos por incendiar o Sistema. Acontece, felizmente, que ao fazê-lo, estão a espetar uma bandarilha no próprio dorso.

Tal como o imperador romano, não tardará muito para que certos Neros venham a cair em desgraça. O espectáculo das chamas é bonito, – sem dúvida! – mas, na hora de apanhar as cinzas e reconstruir a cidade, muitos incendiários serão enforcados.

Sob a capa da democracia, os toureiros e campinos da nossa praça andam já de espada na mão, à espera do momento certo. Por eles matavam toda a ganadaria, esquecendo-se que dela também fazem (fazemos) parte. Mas que lhes importa? A terra queimada sempre esteve na base das ditaduras do proletariado.

O perigo está à espreita: Robin Hoodismo e capitalismo são conceitos antagónicos. É o mesmo que casar com uma velha viúva, à espera da herança; à espera que o Governo impluda, para gáudio dos súbditos. Para depois, sem programa político, sem rumo definido, deixar a economia morrer, com graves consequências para o tecido social.

Por estes dias, falta Ordem. Do Largo do Senado aos Três Candeeiros, as ruas transformaram-se num palco de batalha. De um lado, os Cláudios; do outro, os Neros. A voz da consciência contra a irreverência.

À margem de tudo isto, o Senado, – leia-se, Assembleia Legislativa, – vai funcionando como cartilha materna. No hemiciclo não entram isqueiros, nem bandarilhas. Ali, a Ordem ainda vai sendo o que era. A rua é para os arruaceiros, está provado!

À semelhança da Roma antiga, as ruas funcionam para Macau, como o Coliseu funcionava para os romanos. Entretêm, apenas e só. Já a Assembleia Legislativa é, como o Senado, capaz de destituir os Neros, sem estocadas, mas através das suas fraquezas.

Por muito que custe aos mais sonhadores, o poder político local jamais poderá transformar-se na varanda do palácio de Nero, ou num qualquer camarote de praça de touros.

Dos políticos esperam-se decisões; dos Governos, autoridade. E se for para matar o animal, que seja olhos nos olhos. Acabar-lhe com a vida já ferido no chão, é reduzir a política a cinzas.

O exemplo americano

A inevitabilidade dos povos terem de ser, de tempos a tempos, comandados por Neros, sejam capitalistas ou comunistas, explica o fenómeno George W. Bush.

É verdade que este «ditador» não incendiou Washington, mas fê-lo no resto do mundo. Por isso, os Estados Unidos estão hoje a viver as «passas do Iraque», sem saber que futuro lhes está reservado.

Para além de ter perdido a confiança política de alguns blocos económicos, a Casa Branca perdeu também o carinho dos americanos, sempre habituados a ver naquele símbolo de Poder o remédio para todos os males.

A Administração W. Bush arrisca-se a ficar na história norte-americana como a pior de sempre desde a fundação do País, mais não seja por ter conseguido arruinar com a auto-estima de toda uma nação.

Esta semana, a própria cerimónia de entrega dos Óscares deixou transparecer o quanto os ianques andam desanimados: os filmes nomeados retratam o que de pior há na vida; o glamour de outros tempos foi reduzido ao brilho das estatuetas; a ousadia dos costureiros ficou na gaveta e os guionistas voltaram à rua.

Se Hollywood entrou em ruptura, imagine-se o resto.... Desde a crise na bolsa, até ao aumento da criminalidade juvenil, já pouco ou nada se aproveita do País dos sonhos.

Para alegria da maioria, já não tarda muito para que W. Bush volte para o seu rancho no Texas, de onde nunca deveria ter saído. Aliás, seria desejável que o próximo presidente dos Estados Unidos o convidasse a ficar em casa e não voltasse a aparecer ao mundo. Se fosse vivo, tenho a certeza que Darwin aplaudia esta iniciativa.

Enquanto a purga não acontece, vamo-nos deliciando com imagens sangrentas, com a desvalorização da pataca, com a subida do preço do petróleo e com o desânimo de todos nós.

José Miguel Encarnação in O Clarim

1 comentário:

Yāt go yàn 一個人 Yī gè rén disse...

Artigo brilhante! Criatividade no auge! Zé Miguel Encarnação no seu melhor!Parabéns ao autor!