terça-feira, 14 de julho de 2015

30 anos de Live Aid, tudo na mesma


Pode ser que pelo título o leitor vá pensar que vou debitar aqui retórica de chacha, dizer que o Live Aid não acabou com a fome e por isso não serviu para nada, em suma, todas aquelas idiotices que os comunas e afins debitam, mas que por muito desapegados que digam ser dos bens materiais, a primeira coisa que querem sempre saber é "o que se fez ao dinheiro". Nada disso. Vou falar da minha experiência pessoal no contexto do Live Aid, e no fim, se mais nada ficou, há pelo menos a música. Horas e horas de música - só isso já não chega? Mas atacando por outra frente, vou começar por contar um episódio que se passou comigo e com o meu filho numa manhã qualquer há já alguns anos, quando ele ainda estava longe de ser o matulão de 15 anos, que completa em Dezembro.

Estávamos a tomar o pequeno-almoço num hotel, que se não estou em erro foi em Singapura, na nossa primeira visita à cidade-estados. Aposto nessa hipótese, que terá 70% de possibilidade de ser a correcta. Os outros 30% devem-se a essa desvantagem dos hotéis e dos pequenos-almoços continentais de serviço de "buffet": são todos a mesma coisa. Portanto teria o pequenote os seus sete anos, não mais, aquando desse momento particular que recordo como se fosse ontem, pois são daqueles que "marcam", e nunca se esquecem. Passou-se no final da refeição, quando reparei que ele tinha deixado no prato metade da comida que tinha ido buscar, e dizia-se "enjoado". Chamei-lhe a atenção e recordei-o de uns meninos que lhe tinha mostrado recentemente através do YouTube, e que "não tinham nada para comer" - referia-me às crianças esfomeadas em África, cujo edema as denuncia, em imagens que conseguem impressionar até os mais "rijos de cintura". Foi aí que ele me apresentou a solução para os pobres famélicos da Etiópia e arredores: "Porque é que eles não vêem comer aqui? Há comida de sobra". De facto o raio do puto tinha toda a razão, e é por isso que eu guardo o que as crianças daquela idade, que ainda não aprenderam a ser cínicas e a hipocrisia reduz-se aos seus curtos horizontes infantis: porque são sinceras. Mais do que as guerras, as secas ou a corrupção, o que temos é uma parte do mundo sem ter o que encher a cova de um dente, e outra parte que se enche até à beira do vómito, e até deita comida fora - "senão estraga-se", dizem eles.

Seguiu-se uma pergunta engraçada, vinda dele: "Porque é essas pessoas não têm comida? Não têm dinheiro, é isso?". De facto seria ao mesmo tempo fácil de entender e ao mesmo tempo horrível de constatar, se assim fosse, mas com uma carga de surrealismo; imaginem que estavam os supermercados etíopes com as prateleiras cheias e os congeladores a abarrotar de comida, mas a gerência insistia em que a clientela pagasse a pronto, e em dinheiro vivo, ao ponto de se chegar àquela situação. Talvez tenha sido isso que pensou Bob Geldof, o músico irlandês mentor do Live Aid, que do conforto da sua opulenta residência de estrela de "rock" (não tão opulenta quanto a dos "bob geldofs" de hoje, certamente) assistia a um documentário do jornalista Michael Buerk para a BBC, de 1984, e que inaugurou a galeria daquelas imagens atrozes que passaram a entrar nas nossas casas à hora do jantar nos anos que se seguiram. "Isto não pode ser em Dublin, nem sequer em Cork, ou  Tipperary" - pensou Geldof, cujos antepassados irlandeses tinham a sua história de sofrimento para contar, com milhares a deixarem a sua ilha natal fugindo da fome, desembarcando em Nova Iorque, na terra prometida. Estávamos no início do século XX. Geldof deve ter feito então o mesmo raciocínio que o meu filho, com vinte anos de diferença, quer na distância temporal, quer na idade em que o fez: "estes gajos devem andar tesos, e precisam de massa". Geldof, um tipo elegante e que veste bem, deve ter ficado mal impressionado com mais do que apenas a fome. Aquele não era nem o sítio para se estar, nem a roupa para usar. "Qual roupa???". Exactamente.

Onde se estava mesmo bem era um Londres, e em Dezembro desse ano um estúdio em Notting Hill dava-se o arranque daquela que se tornaria a maior missão humanitária levada a cabo por gente bonita da "pop", com a gravação do single "Do They Know It's Christmas?", que juntou os maiores nomes da indústria musical da altura. Meses depois, e do outro lado do Atlântico, a malta da Motown respondia com "We Are The World", outro single inspirado na missão de ajudar quem provavelmente nunca escutou as canções, ou sabe que lhes foram dedicadas. Pessoalmente gosto mais da primeira, pois o contributo "yankee" peca por "excessos". Quais? Desde o maniqueísmo de Stevie Wonder, que é cego e ao mesmo tempo milionário, mas age com se fosse muito cego e nada milionário, à prisão de ventre de Bruce Springsteen, aos balidos de Willie Nelson, passando pelos pulinhos de Cyndi Lauper e a postura de gorila fêmea de Tina Turner, escolham uma. Nem faltou o fanhoso do Bob  Dylan, e o que dizer de um tema onde no vídeo a pessoa mais normal consegue ser ainda Michael Jackson? Mas gosto da canção, quase tanto como da versão britânica - são hipnóticas, e ao fim de escutar mais de 40 vezes só podem mesmo ficar no ouvido. Repararam como os artistas que cantam primeiro em ambas são os que mais sucesso comercial tiveram nesse período? Paul Young na Grã-Bretanha, e Lionel Richie na América. Pasme-se. Vê-se muito pouco de Geldof, e em "We Are The World" não se vê de todo, mas é possível que estivesse ocupado em encontrar a cereja no topo do bolo que os coitados dos etíopes nunca viram, e que seria colocada no Verão de 1985, há exactamente 30 anos: o Live Aid, o "Woodstock" dos filhos daqueles que fizeram o festival da paz e do amor, a lembrá-los que não deu certo, afinal.

A altura não podia ter sido a melhor do que aquele ano de 1985. Um Verão depois dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, e um antes do mundial de futebol no México, e quando meses antes os Oscares da Academia mais apetecíveis tinham ido para "Amadeus", andava tudo era a pedir um mega-festival de "rock" em cima. Via-se logo. Para mim foi uma experiência interessante;  estava de férias, ia tomando o primeiro contacto com a "rock-pop", e é preciso que recordar que nesse Verão o disco de eleição era "Brothers in Arms", dos Dire Straits, e antes desse foi "Reckless", álbum que catapultou Bryan Adams para o estrelato. Tinha apenas 10 anos, e  o Live Aid deu-se num contexto complicado para mim no plano pessoal, exactamente entre o período de poucos meses em que perdi os meus dois avôs paternos, ele em Abril, a avó em Agosto, e penso que estou a ser preciso. Talvez por ter assistido da primeira fila ao calvário de ambos durante as doenças que os vitimaram, a causa do concerto não me tenha dito nada por aí além: naqueles dias tinha eu a minha própria "Etiópia" em casa. Pondo agora isto na balança, começo a perceber melhor porque é que me recordo especialmente dos dias do Live Aid, e de como foi capaz de me ajudar mais do que à pretensa caridade que motivou a sua organização.

E foi com os olhos de um miúdo de dez anos que vi o Live Aid, e portanto gostei de umas coisas, gostei menos de outras, e fiquei sem perceber quase nada. Do que me recordo como se fosse agora foi da participação dos Queen, de quem fiquei logo cliente. Freddie Mercury não sabia fazer mal aquilo para que veio o mundo para fazer, e fosse por uma causa nobre, ou amarrado com uma arma apontada à cabeça, não conseguia dar um mau "show". Lembro-me ainda de ter ficado acordado até bem tarde, e entendam que naquele tempo não existia internet, e acreditava-se menos da possibilidade de algo assim vir a existir dentro de dez anos, do que na humanidade ir viver para a Lua.  Para perceberem como era horrível, tudo o que sabíamos era-nos dito pela...IMPRENSA! Esses mesmos, que escrevem naquela coisa que deixa tinta nos dedos. Imaginem que por vezes morria uma celebridade às 10 de manhã, e em vez de sabermos às 10:02, só nos diziam no fim do dia! E às vezes era preciso esperar dias! Fosse o Chris Brown espetar dois ou três selos na Rihanna em 1985 e não tinha importância, pois quando se soubesse já tinha o olho ficado bom, e pronto para outra.

Hoje a juventude pode ver o Live Aid no YouTube, e se calhar fá-lo em cinco minutos, passando à frente aquilo que não lhes interessa, ou seja, quase tudo. São capazes de ficar impressionados com a jovalidade de alguns daqueles que hoje olham como sendo "uns cotas quaisquer" - Mick Jagger, para dar um exemplo. E é assim mesmo, o tempo passa, e eu próprio já não tenho mais 10 anos - basta olhar para mim para perceber essa "transformação". Mas tirando isso, pouco mudou, e se Bob Geldof foi feito cavaleiro pela rainha devido aos seus "serviços", para mim continua com aquele aspecto de quem acabou de acordar com a mesma roupa de toda a semana e ainda não encontrou o pente. As crianças na Etiópia que deixaram o cantor dos Boomtown Rats impressionado...bem, já não passam mais fome, isso posso garantir, mas é possível que hajam outras, e não só na Etiópia, e pode ser que tenha deixado de caber no âmbito do "politicamente correcto" mostrar imagens daquelas à hora das refeições (aposto que os vegetarianos têm dedo nisto). Trinta anos passaram, caminhando sem sair do lugar, pois num mundo ideal as crianças que Geldof descobriu em 84 e que teve a generosidade de ajudar - ou pelo menos tentou - estariam hoje sentadas comigo e com o meu filho num "buffet" igual a muitos outros, num hotel, quiçá em Singapura. Mas o mundo está longe de ser o ideal, e este é um mal que nem quem canta consegue espantar.


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