quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A Bíblia


A inspiração da Bíblia depende da ignorância da pessoa que a lê.

Robert G. Ingerssol


Quando era chavalinho pensava que o Boxing Day, que se assinala hoje, 26 de Dezembro, era o dia após a trégua natalícia em que a humanidade se voltava a agredir mutuamente. Para não começarem logo com misseis ou armas químicas, estabeleceu-se que começavam com o boxe, uma modalidade olímpica com regras, para refrearem os ânimos exaltados e a comichão no gatilho a que as mini-férias de paz não-oficial provocaram. Que ingénuo que eu era. Mesmo que fosse verdade, não me apetecia agredir ninguém. Estou ainda num estado de espírito que me deixa incapaz de provocar qualquer forma de conflito, discussão ou desarmonia. E é por isso que resolvi abordar um tema que reúne consenso entre os amantes da paz e do entendimento entre os homens de boa vontade: a Bíblia. Agora vou avisando que quanto mais me embrenho na mata escura deste tema, mais se vai aproximando o dia 27, mais longe vai ficando o Natal, a trégua, a harmonia e todo o resto que me deixou tão mole até aqui. Além disso acho que acabei finalmente de digerir as broas e as rabanadas.

Li a Bíblia pela primeira vez quando tinha 9 anos, e...esperem um pouco. Antes de continuar, queria sugerir a quem esteja a pensar em oferecer-me uma prenda de Natal atrasada, que me ofereça uma Bíblia. Isso mesmo. Tenho a edição impressa do Alcorão mas não tenho uma Bíblia, e a edição online é muito jeitosa, mas não é a mesma coisa. Sabe melhor consultar no papel, molhar o dedo para virar as páginas, sentir o sabor a sagrado das escrituras. Por falar em escrituras, o próprio termo "Bíblia" é muito vago, e utilizado para definir a compilação dos livros das escrituras sagradas de não sei quantas variantes das confissões judaicas e cristãs. Portanto quando pedir "a Bíblia", certifique-se que é a Católica, com os 46 livros do Antigo Testamento e os 27 livros do Novo Testamento. Se fizerem algum tipo de confusão, pelo menos não confundam com a Bíblia Mormon ou outra aberração qualquer. Quanto à aparência, pode ser daquelas simples, capa dura azul-escura e folhas fininhas tamanho A5, e de preferência em Português de Portugal. Obrigado.

Portanto li a Bíblia aos 9 anos e não entendi nada. Nem era para entender logo, senão deixava de ter piada, e fosse tudo tão claro e tinhamos o mundo perfeito, onde as pessoas deixariam de ter tantas dúvidas sobre si mesmas e não viveriam de acordo com os constrangimentos da moral e debaixo da batuta da religião. Quem compilou os cânones foi matreiro. Deixou ali matéria para ler, reler, interpretar de mil e uma maneiras, e garantiu que nunca se chegaria a um consenso. Desconfio que os tais profetas que escreveram os evangelhos eram na realidade juristas. Apesar de todo a simbologia, interpretações diversas e tudo o mais que lança a confusão entre quem lê e procura entender a Bíblia, há momentos que não carecem de um estudo elaborado para que se entenda o seu sentido. Está tudo ali, preto no branco. E é assustador. Alguém me devia ter avisado lá na biblioteca da escola que aquela leitura não era para a minha tenra idade de nove aninhos.

Já sei o que estão a pensar: "lá vai o Leocardo atacar as religiões outra vez". Nada disso. Esqueçam as religiões por um instante e vejam se entendem este conceito muito simples: quem pensa que a Bíblia é um livro sagrado, a palavra de Deus e que tudo o que lá está é muito pio e santo, não leu a Bíblia. Confessem lá, não leram, pois não? Ou leram apenas as passagens que o "xô" padre leu na missa. As partes mais inspiradoras, as rábulas, as lições que nos ensina e que podemos aplicar no dia-a-dia, Jesus, tudo isso, uma maravilha, um sonho cor-de-rosa. Pois vocês não leram a Bíblia e não conhecem a Bíblia: têm uma ideia...errada. E não julguem que me estou aqui a exibir com uma cauda de penas de pavão e o peito inchado como um pinguim-real. Nada disso. Ainda sei menos que vocês. Quanto mais tento entender a Bíblia, maior é a confusão que vai na minha pobre cabecinha. A Bíblia provoca-me ilusões, tonturas e paranóia. Toca a meter a Bíblia na lista de substâncias proibidas, fáxavôr.

A Bíblia divide-se em Antigo e Novo Testamento, como já vimos. Para os católicos mais "politicamente correctos", o primeiro é como que um original indigesto, e o segundo uma errata, uma versão mais "soft", mais adequada ao crente que não gosta de fazer muitas perguntas enquanto...crê. Mas é pelo Antigo Testamento exactamente que vamos começar. Sabiam que enquanto o AT da Igreja Católica tem 46 livros, o da Protestante tem apenas 39, mas o da Ortodoxa tem mais que a Católica? Se acham o vosso AT picante, esperem só até verem o da Ortodoxa. Mesmo assim o AT católico requer estômago de ferro para ser lido. Imaginem que uma pessoa inteligente que nunca tenha ouvido falar de religião, de Deus ou da Bíblia (eu disse "imaginem", lembram-se?) lê o Antigo Testamento. Para facilitar um pouco as coisas, organizamos os textos por ordem cronológica, com anotações que ajudem a roer uns ossos mais duros. Passados uns dias, perguntamos-lhe o que achou, ao que ele vai responder: "alucinante. é ficção?". Depois de lhe dizermos que quase um terço da humanidade acredita ser uma realidade passada, e que Deus existe, ele entra em pânico: "o quê? é preciso deter este Deus quanto antes!"

Deus, personagem principal da Bíblia, revela-se no Antigo Testamento a um patriarca de nome Abrãao. Antes de Abrãao O dar a conhecer ao mundo, nunca ninguém tinha ouvido falar de Deus, e olhem que já muita água tinha corrido debaixo da ponte desde um certo dia num local chamado Paraíso onde Deus deu a conhecer o seu péssimo feitio. O AT é praticamente um resumo de Deus a somar e a seguir na sua procissão de vingança, ódio, destruição e julgamentos no mínimo controversos. Quem lê alguns dos episódios mais "sumarentos" da ira de Deus fica sem entender bem alguns critérios. Quando demonstra, quer através da fúria divina ou através da palavra dos profetas que reprova actos como a sodomia, a masturbação e segundo muitas interpretações aceites como válidas, a homossexualidade, e depois tolera vários episódios de incesto, poligamia e violação lança a confusão. Eu sempre pensei, e isto falando apenas do ponto de vista humanista, que a masturbação seria um acto mais inocente que o incesto, pois não interfere com a dignidade alheia.

O Antigo Testamento é comum ao Judaísmo e ao Cristianismo, e muitos dos princípios nele expressos encontram-se em grande parte do Alcorão. É comum às três grandes religiões Abrãamicas. O Novo Testamento marca a demarcação da fé cristã dos canônes hebraicos; os 27 livros que o compõem são muito mais ligeiros que o AT, e o principal aliciante é a vinda de Cristo, filho de Deus. É curioso que para mudar a imagem de Deus severo e vingativo patente no AT para a de um Deus pai, bom e misericordioso do NT seja necessário sacrificar o Seu próprio filho. Portanto é suposto simpatizar mais com um Deus que sujeita o seu próprio filho à dor da tortura e finalmente à morte do que o Deus que dizimou Sodoma e Gomorra, lançou pragas sobre o povo do Egipto ou humilhou Jó, que sempre lhe havia sido fiel. Mais sorte que Cristo teve Isaac, filho do tal Abrãao, salvo "pelo gongo" no momento em que o seu pai se preparava para o estripar em nome da sua devoção ao supremo. E quanto a Jesus, fica no ar uma dúvida: morreu pelos nossos pecados, "para nos salvar". Para nos salvar do quê, exactamente? Com tudo o que se sucedeu nos últimos 2000 anos desde o alegado sacrifício de Cristo, era altura de Deus mandar mais um cordeiro para o sacrifício. Ou seis, ou sete. Jesus, um homem bom que pregou o bem, não merecia ser confundido com a Bíblia.

A Bíblia é um livro datado, cheio de ensinamentos válidos, misturados com equívocos tremendos que nunca deveriam constar de um livro supostamente "sagrado". Existem ali lições que podem ser usadas no dia-a-dia para melhorar a vida de quem aceita um só Deus, bem como ideias perigosas, pensamentos retrógrados e atentados ao pensamento livre e aos pressupostos mais básicos da ciência. É perfeitamente normal que em tempos idos se acreditassem em conceitos como a criação, relatada no livro da Genesis. Mas com aquilo que sabemos hoje, como é que se vai convencer alguém que o homem foi feito do barro e a mulher de uma costela dele? Não se trata de dar o braço a torcer, mas aceitar que nem tudo o que está nas escrituras é suposto ser levado a sério. O importante é procurar na Bíblia aquilo que nos serve para melhorar as nossas vidas, o essencial. Todo o resto é supérfluo.

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