sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Macau dos crentes


Chegamos a sexta-feira, e mais uma vez deixo aqui o artigo do Hoje Macau da edição de ontem, para quem ainda não leu.

Como produto de quase cinco séculos de ocupação por parte de uma potência estrangeira ocidental e cristã, não surpreende que Macau seja hoje um território onde a Igreja Católica tenha ainda uma presença significativa. A sua influência chegou a ser esmagadora, e até há menos de um século quem estava contra o clero, não tinha um grande futuro pela frente na Cidade do Santo Nome de Deus – um nome que assenta como uma luva ao antigo enclave português. A Igreja mandava na educação, encarregava-se das instituições sociais, do registo civil e da caridade, e tinha uma palavra a dizer na política. Seria impensável que a colónia tivesse um Governador laico ou ateu, e nem o evento da Primeira República alterou esta tendência. O trabalho de casa tinha sido bem feito, e a comunidade macaense foi sempre temente a Deus e nunca vacilou na hora de demonstrar a sua religiosidade e obediência incondicional à Diocese local.

Macau deve ser a única cidade do mundo onde todas as freguesias são baptizadas com o nome da Igreja que serve os seus residentes. Assim temos as freguesias da Sé, S. Lourenço, Sto. António, S. Lázaro e Nossa Senhora de Fátima na península de Macau, Nossa Senhora do Carmo na Taipa, e S. Francisco Xavier em Coloane. Mesmo a toponímia do território é pontuda com nomes de santos ou padres, muitos deles completamente desconhecidos, ou outra dedicatória aos mistérios do divino. O respeito é mais que muito, e seria desastroso não incluir o direito à liberdade de culto na elaboração da Lei Básica que serve de mini-constituição à recentemente criada Região Administrativa Especial de Macau. O desrespeito pela fé cristã por parte da nova administração chinesa nunca seria bem recebida pelos inúmeros fiéis.

A Igreja Católica é um dos principais intervenientes da génese do Macau moderno. Os salesianos em particular tiveram e têm um papel preponderante na educação, e algumas das instituições de ensino da sua tutela são ainda consideradas de grande qualidade, apesar da discutível opção pelas escolas unissexuais. O feito mais assinalável terá sido durante a Guerra do Pacífico, no início dos anos 40, quando a Igreja pressionou a administração colonial a abrir as fronteiras a milhares de refugiados do continente, e cujas gerações constituem actualmente uma grande fatia da população chinesa de Macau, dos “oumunyan”. A Igreja Católica esteve sempre atenta às necessidades da população mais pobre, e mesmo os pagãos podiam contar com uma refeição gratuita, contando que assistissem a uma hora de missa. Muitos foram convertidos, acedendo à intenção subliminar do prelado local.

Com o poder vem naturalmente o dinheiro. A Diocese local foi imune a qualquer crise, e contou sempre com a generosidade inata dos fiéis e a cumplicidade dos consecutivos governos. Há alguns anos a Igreja detinha uma parcela significativa dos terrenos, e mesmo a área que é hoje ocupada pelos templos, escolas, seminários e outros locais de culto é invejável. A Igreja é imune à especulação imobiliária que grassa em Macau, mas isso não significa que rejeite um “pézinho de dança” quando se trata de entrar nesse jogo. Afinal é para o bem das alminhas, que quanto mais generosas forem em vida, mais recompensadas serão no Éden. Amén.

O amor que a Igreja nutre pelo seu rebanho é devidamente correspondido. Os cristãos de Macau, especialmente os portugueses e macaenses respondem com prontidão aos chamamentos da fé, e é comum encontrar gente de todos os estratos sociais, origens e condição social a praticar o catolicismo regularmente, contrariando a tendência dos países mais desenvolvidos, onde uma grande dose de pragmatismo leva a um nítido afastamento do exercício da religião, e até a alguma indiferença pelas suas instituições. Em pleno século XXI, o amor e temor a Deus neste pequeno cantinho do sul da China estão bem e recomendam-se.

As festividades religiosas são tão concorridas ao ponto de serem sempre notícia nos média, cada uma a seu tempo. Antes da Páscoa temos a tradicional procissão do Senhor dos Passos, uma representação da paixão de Cristo que em tudo se assemelha a um funeral, com o caixão e a efígie do Salvador a serem transportados pelas ruas do território. A sexta-feira santa é marcada pelo cerimonial de “correr as igrejas”, uma singela homenagem ao calvário de Jesus, e o próprio Domingo de Páscoa é celebrado de forma efusiva, com reuniões familiares e o cumprimento de rituais que só encontra paralelo na celebração do Natal. Uma devoção de causar inveja a alguns países assumidamente católicos mas onde o culto e as vocações se debatem com uma “crise” em termos de adesão.

Em Maio, no dia 13, os fiéis acorrem à procissão em homenagem às aparições da Virgem aos três pastorinhos de Fátima, uma romagem que pouco fica a dever ao seu original. A subida da imagem de Maria à Ermida da Penha reveste-se de um carácter quase obrigatório, e pouco importa a muitos dos peregrinos a distância daquela realidade portuguesa ou a própria credibilidade das aparições, de carácter questionável. O culto mariano é praticado em Macau de corpo inteiro, bem como os restantes dias santos. Não existe contradição, dúvida ou paradoxo que dilua a devoção dos crentes locais. Mesmo o Carnaval, a festa profana que antecede a Quaresma, tem no território uma tradição respeitável; o pandemónio carnavalesco e a entrega aos caprichos próprios da fraqueza da carne eram vistos como uma forma de catarse, o cumprimento de um cerimonial que terminava com a redenção e o arrependimento no Domingo da ressurreição. Uma autêntica maratona da fé.

As missas que se realizam um pouco por todo o território em língua portuguesa, chinesa ou inglesa em todas as paróquias são sempre concorridas, e evidenciam o cumprimento da liberdade de culto que havia sido prometida pelos intérpretes da transição. A Igreja católica-romana e o Vaticano continuam a ter aqui a sua “tasca chinesa”, ao contrário do que acontece no continente, onde a “igreja patriótica” dita as regras da adoração a Cristo, que se vivesse hoje “aprovaria o partido único”, lógico. Mesmo esta realidade é encarada com normalidade, sem grande espaço para polémicas e controvérsias. Assim como em muitos outros vértices da vivência entre o Ocidente e Oriente, Macau podia muito bem servir de ponte a um eventual entendimento entre a Santa Sé e Pequim, caso existisse mesmo uma vontade mútua. É mesmo assim esta relação entre este pequeno território temente a Deus e obediente ao gigante do outro lado da fronteira: pacífica.

Não fui abençoado com a virtude da fé, nem me revejo na arrogância do ateísmo, e por isso sento-me na muralha do agnosticismo, que sempre assumi. Contudo não consigo imaginar Macau sem o lado Católico, uma mancha indelével na matriz deste pequeno território asiático. Aprecio os seus aspectos positivos, o do humanismo, o da caridade, as acções em prol do bem e os ensinamentos do amor pelo próximo. Quanto ao resto temos todo o tempo do mundo para discutir. E depois se verá, quando se esgotar o nosso tempo terreno e for preciso prestar contas. Ou talvez não…




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