Está aí mais um Entrudo, mais conhecido por Carnaval, uma festa que aprendi desde novo a detestar. Não quero com isto tentar ser “especial” ou diferente,ou um estraga-prazeres, mas a experiência de muitos carnaváis passados deixou-me com uma espécie de trauma difícil de ultrapassar. Até gosto de “brincar” e aprecio o significado desta festa pagã e carnal, mas os “carnaváis” do meu passado deixaram-me com um amargo de boca que nem a mais competente pasta dentifrica ou elixir oral me conseguem tirar.
No Montijo, onde cresci, bem como em qualquer outra “anytown” portuguesa do último quartel do século XX o Carnaval era um pretexto para que cometessem abusos contra a dignidade humana. Na semana antes da terça-feira de Carnaval as ruas e as escolas eram já frequentadas pelos foliões, os “mascarados”, que consideravam divertido cometer actos de vandalismo, como atacar pessoas com ovos, farinha ou vinagre, atirar bombinhas de mau-cheiro ou rebentar pequenos explosivos, um hábito reprovável que muitas vezes resultou em lesões graves para os seus praticantes. Isto acontecia com a cumplicidade das lojas da especialidade, que vendiam este tipo de produtos, apesar da censura de (pouca) gente mais sensata. Além destes produtos explosivos e tóxicos, vendem-se ainda confeites, fitas e outras porcarias que na ressaca do Carnaval só servem para dar trabalho aos profissionais da limpeza. Até a poluição mais ordinária entra na “festa”.
O lema é bem conhecido: “É carnaval, ninguém leva a mal”. Era uma altura do ano em que o facto que chegar a casa todo molhado ou cagado de farinha e ovos se insiria numa “normalidade” revestida com contornos barbáricos. Era a época dourada dos grunhos e outros indivíduos que recentemente receberam a designação de “bullies” mas que sempre existiram, aproveitando-se da fraqueza de outros ou da impunidade que o Carnaval conferia aos seus actos de terrorismo amador. O pior é que quem não estava interessado em “brincar” e queria simplesmente levar uma vida normal até à quarta-feira de cinzas era obrigado a atravessar um campo minado, que conhecia o expoente maximo no fim-de-semana antes da terça-feira do Entrudo. Sem o mesmo glamour do Carnaval de Veneza ou a irreverência dos carnaváis do Rio ou da Bahia, o nosso Entrudo servia de desculpa para a anarquia e o vandalismo autorizados.
Os portugueses adoram brincar ao Carnaval, e cidades como Ovar, Loulé ou Torres Vedras, para citar algumas, conhecem nesta quadra o seu apogeu turístico. Uma vez que o nosso país se encontra no hemisfério norte, o Carnaval é em pleno Inverno, e reza-se a S. Pedro e aos restantes santinhos que o tempo ajude, que não chova ou que não faça um frio de rachar que intimide as “escolas de samba” lusitanas de mostrar as plumas e lantejoulas, dando expressão à festa pagã da carne que antecede a Quaresma. O Carnaval brasileiro, o mais famoso e espectacular do mundo, é o modelo e a inspiração máximos, e só os rigores da meteorologia preocupam os organizadores dos carnaváis portugueses, que amiúde convidam artistas brasileiros para conferir um sabor mais tropical à festa.
Não pensem que desprezo o Carnaval porque fui vítima frequenta das brincadeiras parvas, nada disso – durante essa delicada semana evitava sair de casa, evitando assim dissabores – mas em Macau encontrei a trégua carnavalesca que procurei durante toda a minha vida. Não gosto de me mascarar, fi-lo apenas quando era pequeno e mais por capricho dos pais, não me agradava a ideia de incomodar desconhecidos nem precisei de escapes para a minha rebeldia. Não acho piada aos desfiles, e as músicas de Carnaval são patetóides: Mamãe eu quero? Se você fosse sincera (oh oh oh oh) Aurora? É dos carecas que elas gostam mais? Tenham dó…
Aqui a muitos milhares de quilómetros de distância daquela palhaçada sinto-me protegido pela capa do paganismo, que leva a que a população local seja completamente ignorante do significado do Carnaval. Folgo viver num território onde atirar farinha ou ovos a alguém e rebentar explosivos fora do contexto do Ano Novo Chinês dão direito a uma visita mais demorada à esquadra da polícia. O Carnaval tem as suas tradições entre a comunidade macaense, e tiveram uma idade do ouro nos tempos do saudoso Adé e das festas no Teatro D. Pedro V, mas num tom mais moderado.
Actualmente o Carnaval reveste-se do mesmo significado do Halloween, e celebra-se de forma privada e discreta, sem “arrastar” as pessoas que preferem paz e sossego. E é assim que quero que seja o meu Carnaval: insignificante. Para quem gosta, que se divirta à brava, mas eu não preciso de datas para exteriorizar a minha extravagância. E já agora, cumpram o jejum da quarta-feira de cinzas, se querem levar a coisa mesmo a sério.
1 comentário:
Fartei-me de rir :) De facto só em Portugal, é que esta época era uma desculpa para fazer coisas parvas que nunca tiveram piada nenhuma. E piora com a imitação do carnaval brasileiro. Prefiro ver os caretos de Podence e assistir ao ciclo do fim do Inverno.
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