domingo, 13 de julho de 2014

"One Night in Bangkok", esmiuçado e à lupa


A versão do single de "One Night in Bangkok".

E assim no dia 8 deixei Pattaya em direcção a Bangkok (ou em português "Banguecoque", que por motivos de estética evito usar, tal como não uso "Francoforte" para Frankfurt ou "Dusseldórfia" para Dusseldorf), capital do antigo reino do Sião, actualmente Tailândia. Passei lá dois dias e duas noites, bastante agradáveis até, e achei que a cidade está muito melhor desde a última vez que a visitei. Mais limpa, mais arrumada, e mais segura - nem cheguei a sentir por um instante que estava num país que tem estado de beira de uma guerra civil nos últimos anos. Notei também uma certa moderação na "caça ao turista", e que é mais fácil apanhar um táxi sem ter que levar com o "artista" que nos leva lá baratinho, mas que primeiro temos que passar por um loja negra, de onde sairíamos literalmente com os bolsos "aspirados". Claro que ainda há por lá uma considerável quantidade de chicos-espertos que nos olham para a testa e vêem lá escrito "come-me a pinha", mas se não consiguirem apanhar um taxista honesto à primeira tentativa, conseguem à segunda, ou na pior das hipóteses à terceira. Desta vez a experiência mais desagradável foi com aqueles tipos aparentemente originários do sub-continente indiano, que nos abordam no meio da rua com um catálogo de uma alfaiate qualquer e perguntam-nos se queremos comprar um facto. Quando digo "abordam" quero dizer que se metem à nossa frente e espetam-nos com o catálogo na cara, como se a nossa vida dependesse do que eles nos estão ali a tentar vender. Senti-me mais agastado com isto em Pattaya, ao ponto de me ter irritado com um deles e dito: "epá estou aqui de camisa sem mangas, calções e chinelos, achas que preciso de um fato para quê???".

Quem conhece Bangkok, como quase todos os leitores de Macau deve conhecer, ou pelo menos foi lá pelo menos uma vez, sabe o que pode esperar. Não é Paris nem Londres, os motivos de interesse são variados, e passam por muito do que os templos, palácios e mercados de rua. Não sei como estava a situação durante o período em que vigorou a lei marcial e o recolher obrigatório, após a saída de Yingluck Shinawatra do Governo, mas pelo menos nas zonas turísticas e no centro não dei conta de qualquer actividade anormal, ou sequer da presença de militares ou polícia em grande número. O que se percebe assim que se chega ao aeroporto e se compra um cartão de telefone, é que existe uma censura para lá do que é recomendável. Os sítios de apostas desportivas estão praticamente todos bloqueados, e se não for com carácter definitivo deve ser pelo menos até terminar o mundial de futebol. O que achei deveras irónico foi o facto dos sítios de pornografia estarem bloqueados, e quem quiser aceder a eles depara com uma mensagem do Ministério da Cultura e da Comunicação. Isto num país onde me basta atravessar a rua para encontrar uma alegada "virgem" (ou duas) e r-lhe para se sentar na minha cara, o que se pode considerar algo no mínimo paradoxal. O sexo está em toda a parte em Bangkok, e em qualquer cidade onde ocorra um número considerável de turistas. Quem estiver interessado em ir fazer turismo sexual à Tailândia, tem muito por onde escolher, mas não se esqueça que aquilo é uma indústria. Ninguém pense que vai ali viver tórridas aventuras com sabor oriental porque é "bonito" ou "bem falante". Ali podem materializar qualquer fantasia, fetiche ou psicose, contando que paguem, é claro.

Outra particularidade interessante, e isto ainda no âmbito da censura, é a lei de "lesa-majestade", que proíbe que se insulte a família real, que é venerada pela população. Por "insulto" entende-se muita coisa, e em alguns casos esta legislação tem sido usada para cometer politicídios ou deter gente considerada "incómoda". Mas os tipos levam isto muito a sério, e aqui há uns tempos houve um engraçadinho que andou a publicar no YouTube vídeos insultuosos atingindo o rei e a sua família, e as autoridades tailandesas trataram do caso quase como se se tivesse tratado de um atentado terrorista. O melhor mesmo é não fazer qualquer referência à família real, e muito menos qualquer crítica, por muito justificada ou elaborada que esta seja - e já agora se forem ao cinema tenham o cuidado de se levantar enquanto toca o hino e aparece a imagem do rei Bhumidol, antes da exibição do filme; recusar-se a fazê-lo é brincar com fogo. Há estrangeiros que já tiveram problemas desta natureza, ora porque são patetas, ou estavam bêbados, ou tiveram azar. Há alguns anos um turista francês foi detido à chegada ao aeroporto de Bangkok por se ter recusado a desligar a luz por cima do seu assento no avião, porque "queria ler". O problema é que perto de si estava sentada uma jovem, membro da realeza, que queria dormir. Seja como for, quem estiver a planear ir para descansar ou divertir-se e não para fazer activismo político, não tem nada com que se preocupar.


A versão do musical da Broadway.

E isto leva-me ao tema principal deste artigo: o tema "One Night in Bangkok", um single que entre 1984 e 1985 vendeu milhões de cópias em todo o mundo, chegando ao nº 1 em vários "charts" europeus, nº 12 no Reino Unido e nº 3 na Billboard norte-americana. Na Tailândia, contudo, foi censurada. Surprise, surprise. Razão? Oficialmente "por transmitir uma ideia errada da sociedade tailandesa, além de desrespeitar a religião budista". Mas foi mesmo assim? Já lá vamos. Uma das razões que fez tanto sucesso deve-se ao seu ritmo dançável, e isto tem uma explicação: os autores da música são nem mais nem menos que Benny Anderson e Björn Ulvaeus, os compositores dos ABBA, que se tinham separado dois anos antes. A letra, que tanta polémica causou no país dos sorrisos, ficou a cargo de Tim Rice, que é mais conhecido pelas suas colaborações em musicais da Broadway, um deles, "Jesus Cristo Superstar", em colaboração com Andrew Lloyd Weber, é bem conhecido, e na sua versão original contou também com Murray Head no papel de Judas Iscariotes. E não é à toa que encontramos tão iluster, elenco neste tema, pois na realidade "One Night in Bangkok" é uma das canções de um musical da Broadway, intitulado "Chess". Portanto é um pouco fora de contexto que o single é lançado, e quem não conhece o enredo do musical, fica sem entender muito bem grande parte da letra, ou o seu sentido. E do que fala então, "One Night in Bangkok"?

O musical "Chess" conta a história de dois mestres do xadrez mundial, ambos inominados, e que são referidos apenas como "o americano", interpretado originalmente por Murray Head, e "o russo", que na estreia da Broadway teve Tommy Körberg no papel. O personagem do americano é inspirada parcialmente em Bobby Fisher, enquanto o russo, que é um desertor e exilado político, "atira" a Valery Karpov e Viktor Korchnoi. Os dois disputam o título mundial, com desafios realizados em várias cidades, e uma delas é Bangkok, que no contexto de "Chess" é apenas uma pequena passagem. . A assistente do americano, Florence (Elaine Page no musical da Broadway) apaixona-se pelo russo, criando um clima de tensão, e conflito, e pronto, é mais uma daquelas histórias típicas dos tempos da Guerra Fria. Devido à temática do musical, que se debruçava sobre o jogo do xadrez, a Broadway torceu o nariz e foi adiando a estreia, mas os autores da música não perderam tempo e lançaram logo um duplo álbum conceptual, de onde o primeiro single foi "One Night in Bangkok", e mesmo sem o fio condutor do guião, o sucesso estrondoso de vendas do single e o "tour" que se seguiu ajudaram o musical a ver a luz do dia, e em 1986 estreou-se no West End, em Londres, e dois anos mais tarde pisou finalmente os palcos da Broadway. Richard Nelson, autor da história, aproveitou para lançá-la também em livro nesse ano, e "Chess" foi correndo o mundo, ora na sua forma de musical, onde em concerto "rock". A última exibição foi em Praga, no ano passado.

A introdução de "One Night in Bangkok", que antecede o tema quer na versão em single, álbum, quer no próprio musical, é uma peça instrumental de inspiração oriental com a duração de cerca de um minuto, intitulada "Bangkok", ao que se segue uma mudança abrupta de estilo, e entra de voz de Murray Head, o "americano". Este conta-nos que está em Bangkok para disputar uma partida decisiva com o seu rival russo, e de como tenta manter os níveis de concentração, apesar das distrações que a cidade lhe induz. Quem se interessa mesmo pela letra e não conhece o musical, fica sem entender muito bem algumas partes. A segunda estrofe começa com o personagem a dizer "Time flies, doesn't seem a minute/Since the Tirolean Spa had the chess boys in it". O que raio é este "Tirolean Spa"? Trata-se de um hotel nos alpes italianos onde se realizou uma etapa do torneio mundial de xadrez. No fim dessa mesma estrofe, "It's Iceland or the Philippines/Or Hastings or, or this place" é uma referência a outros locais onde o torneio se disputou, sendo que Hastings é uma cidade inglesa considerada um dos grandes "santuários" do xadrez mundial.

Mais para a frente temos as partes que irritaram os tailandeses - injustificadamente, a meu ver. Em "Siam's gonna be the witness/To the ultimate test of cerebral fitness/This grips me more than would/A muddy old river or Reclining Buddha" "o americano" diz que a perspectiva do embate com "o russo" é mais excitante do que qualquer "velho rio lamacento ou Buda reclinado". Insultos à cidade e à religião budista? Bem, o rio Mekong, que atravessa a cidade, não é propriamento o Reno ou o Sena, e ainda hoje se encontra bem sujinho, coitado, o que dizer de há 30 anos? E o "Buda reclinado" a que a canção se refere, será o Buda do Templo de Wat Pho? Este?


De facto o Buda de Wat Pho não está de pé, sentado ou sequer completamente deitado. A esta posição vertical com a cabeça suportada por uma das mãos chama-se reclinação, e mesmo o nome em tailandês, "Phra Buddhasaiyas" (พระพุทธไสยาสน์) tem exactamente esse significado: Buda reclinado. Portanto onde está o insulto? Chamar "lamacento" ao rio é até simpático, e ele diz "Buda reclinado", e não "a porcaria do Buda reclinado". Será que é porque diz que lhe interessa mais preparar-se para a partida de xadrez do que ir ver o Buda? A mim parece-me que os nossos amigos tailandeses ou são muito, mas mesmo muito sensíveis, ou então estão só a querer aparecer. E não seria a primeira vez, pois outro musical, "The King and I", tinha já muitos anos antes causado a ira dos siameses, que não gostaram de ver o seu rei Mongkut imortalizado por Yul Brynner no grande ecrã, num desempenho que até lhe valeu o Oscar para melhor actor em 1956. Brynner é aliás referido na primeira estrofe de "One Night in Bangkok": "Bangkok, Oriental setting/And the city don't know what the city is getting/The creme de la creme of the chess world/In a show with everything but Yul Brynner". Curiosamente a opinião generalizada é de que "The King and I" descreve fielmente os acontecimentos do ponto de vista histórico, mas com os tailandeses, vá-se lá entender que bicho lhes mordeu.

A letra da canção pode não ser muito simpática quando descreve Bangkok, mas não se pode dizer que transmita "uma ideia errada da sociedade tailandesa", como alegam os censores - antes pela contrário. De sociedade fala-se pouco, mas fazem-se referências indirectas e até bastante suaves à prostituição e à indústria do sexo em geral, bem como a outras formas de entretenimento, casos dos salões de massagem ou dos bares. E quem o pode acusar de estar a mentir quando diz no refrão "One night in Bangkok makes a hard man humble/Not much between despair and ecstasy/One night in Bangkok and the tough guys tumble/Can't be too careful with your company/I can feel the Devil walking next to me". Será que os tailandeses ficaram ofendidos porque o personagem não se deixa impressionar facilmente, e onde diz "Geth 'Thai'd, you're talking to a tourist/Whose every move's among the purest/I get my kicks above the waistline, sunshine" está a dizer que a "fruta" não presta? Eu até acho boa, mas o rapaz prefere o xadrez, pronto, são gostos. Será que é por ser um "espertalhão", e diz "I don't see you guys rating/The kind of mate I'm contemplating/I'd let you watch, I would invite you/But the queens we use would not excite you", usando um sentido duplo às "rainhas", insinuando que os turistas em geral preferem as "da noite" do que as do tabuleiro de xadrez?

Entre algumas das linhas do personagem, escuta-se um coro de vozes femininas que o seduzem no sentido de usufruír das delícias do foro carnal à disposição em Bangkok. Nesta: "It's a drag, it's a bore, it's really such a pity/To be looking at the board, not looking at the city", ele responde "Whaddya mean?/Ya seen one crowded, polluted, stinking town". Outra vez, onde está a mentira? E Bangkok não mudou muito em termos de oferta 30 anos depois da descrição deste musical. Mas falamos de oferta, e esta é muito variada; há quem vá lá de propósito para a pouca-vergonha, há quem evite frequentar essas zonas e prefira os monumentos ou os "shoppings", há quem vá lá tratar da saúde e tudo, requisitando os serviços do célebre BHN Hospital, que faz "check-ups" completos com resultados detalhados em apenas dia e meio a preços acessíveis, ofereçendo um conforto semelhante a de um hotel de cinco estrelas. Pessoalmente acho que tudo tem o seu lugar, e quem não gosta do aspecto sexual ou acha tudo muito promíscuo, tem muito mais por onde escolher. Depois não diga é que "não queria, mas foi obrigado", porque isso é mentira. Não fiquei "one night in Bangkok" desta vez, mas duas, e gostei. Fui ver o Buda reclinado, fiz compras, massagens e também andei pelos bares. E vou voltar em breve.


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