sábado, 19 de julho de 2014

Improvável, lamentável, inaceitável


Um avião da Malaysia Airlines que fazia a ligação entre Amesterdão e Kuala Lumpur foi abatido na quinta-feira enquanto sobrevoava o espaço aéreo ucraniano, e viria a despenhar-se com 298 pessoas a bordo - julgo que dizer "não há sobreviventes", como insistem ainda em fazer alguns serviços noticiosos, é uma redundância escusada, e olhando para as imagem dos destroços não haveria milagre que valesse a nenhum dos passageiros. A maior parte das vítimas era de nacionalidade holandesa, e entre os que vinham passar as férias no Sudeste Asiático encontravam-se perto de uma centena de especialistas em imunologia e virologia que viriam participar numa conferência sobre o HIV/SIDA em Melbourne este fim-de-semana, e há quem especule até que uma eventual cura para o vírus estaria a bordo do avião da companhia aérea malaia. No rescaldo de um acidente destas proporções e com todo este mediatismo é normal que se especule sobre tudo e mais alguma coisa, e que surjam relatos de coincidências incríveis, como o indivíduo que perdeu este voo e também já tinha perdido o outro da mesma companhia que desapareceu em Março, da família que perdeu membros tanto nesse voo como neste, tudo isso detalhes que deslumbram os apaixonados da ufologia e afins, mas que nos desviam do essencial: as causas da tragédia.

Quando se dá uma catástrofe aérea devido a factores como o erro humano ou as condições climatéricas, nada mais há a fazer do que lamentar, e qualquer pessoa que entre num avião sabe que corre sempre esse risco. Mesmo assim continua a ser uma das formas mais seguras de viajar, e as probabilidades de se encontrar a morte a bordo de um voo comercial são menores do que perder a vida num acidente de viação. Aliás, o risco está sempre presente em toda a parte, e permitem que use uma verdade de La Palisse, para que se morra basta apenas estar vivo. Claro que uma viagem de avião tem uma carga psicológica especial, pois se no caso de sermos apanhados no meio de um tiroteio existir a possibilidade de procurar um local seguro, ali a milhares de pés de altura estamos apenas entregues ao destino. Mesmo dentro de um automóvel ou de outro veículo terrestre, existe sempre a possibilidade de pedir para parar e descer, caso se tenham um mau pressentimento. Ali a nossa vida está entregue a factores alheios ao nosso controlo desde que embarcamos, e até que chegamos ao destino. Por muito que as estatísticas provem que as possibilidades de morrer num acidente aéreo são "residuais", aquelas quase 300 pessoas que agora são esse "resíduo" diziam onde podiam enfiar essas tais estatísticas - apenas fosse isso possível, coitadas.

Entre os receios que invadem as pessoas que têm medo de voar contam-se vários, e todos relacionados com a confiança no aparelho que os transporta e na tripulação encarregada de os levar ao seu destino. Os mais fatalistas imaginam fissuras na fuselagem do aparelho, um motor que subitamente se avaria a meio da viagem, uma fuga de combustível, ou no limite temem que a tripulação tenha uma morte súbita provocada por uma tarte de salmão passada, que tinha sobrado de uma jantarada durante uma escala em Oslo, e deixe o avião à deriva. Os receios de terrorismo, de que por um infelicidade venha a bordo algum infeliz jihadista ou algo desse género que acredite que mandando toda a gente pelos ares tem 40 virgens à sua espera no Paraíso são agora menos levados em conta. O reforço dos procedimentos de segurança dentro dos aeroportos, que impedem com uma grande margem de confiança que alguém leve a bordo uma lima das unhas, podem por vezes causar algum transtorno, mas pelo menos deixam alguns passageiros viajar mais tranquilos, e menos desconfiados daquele tipo barbudo com a cabeça coberta por um "napperon" de renda de birlos sentado dois lugares atrás do nosso. Do mal o menos, apraz dizer.

O que a segurança dos aeroportos não consegue prevenir são factores externos, como aquele que está na origem da tragédia que vitimou os passageiros do voo MH17 da Malaysia Airlines esta quinta-feira. O avião foi atingido por uma bateria anti-aérea na altura em que sobrevoava a Ucrânia, perto de Kiev, e após as primeiras investigações concluiu-se que os autores do atentado são separatistas ucranianos pró-Rússia, que desde finais de Fevereiro tem efectuado acções de guerrilha contra o Governo de Kiev pelo controlo da península da Crimea, reclamada pela Rússia, e com apoio expressod o Kremlin e do presidente Vladimir Putin. Parece uma certeza que foram estes os responsáveis pelo abate do Boeing 777, e o próprio Putin, que fica agora numa posição delicada, admite que sim, que foram os seus, mas responsabiliza também o Ocidente pela sua interferência na crise, que levou ao reatamento dos confrontos. Como a bordo deste voo não ia qualquer interveniente neste conflito, ter-se-á tratado de um "engano". Pois é, mas só que não é o tipo de engano em que se pode pedir desculpa e do outro lado alguém responde "deixem lá, não tem importância".

Agora a pergunta que anda na boca de toda a gente: o que estava um avião a fazer sobrevoando um a zona de conflito, à revelia das mais elementares regras do bom senso aplicado à aviação civil? Os amantes das estatísticas virão novamente a terreno para dizer que apesar de aquela ser uma rota de risco, as probabilidades de algo deste género acontecer são de "uma para dez mil". Está bem, só que esta não fazia parte do grupo das 9999 felizardas, e agora? Fala-se de razões que se prendem com a "economia de combustível", optando por esta rota que muitas companhias aéreas riscaram do mapa por razões de segurança. O quê? Mas será que estou a entender bem? Economiza-se em nome do lucro e para isso coloca-se a vida dos passageiros em risco? E a seguir, uma promoção do género: "viaje quase de graça, no nosso 'airbus' a cair de podre e uma tripulação inteiramente composta de doentes oncológicos em fase terminal!". Quando os acidentes aéreos se prendem com factores como a idade do aparelho ou negligência na sua manutenção, pedem-se responsabilidades às companhias de aviação. Aqui penso que será este o procedimento a seguir pelas famílias das vítimas, o de processar a Malaysian Airlines. Não traz os seus entes queridos de volta, mas pode ser que faça com que as empresas de transportes aéreos repensem toda esta bandalheira que andam a fomentar.

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