Mais um ano, mais uma edição das Linhas de Acção Governativa (LAG), a fogueira das vaidades do território. Faz-se o balanço deste ano, fala-se do próximo, vem a “artilharia pesada” para a AL. Os srs. Secretários, directores, técnicos, deputados, juristas, jornalistas. A fina nata dos intelectuais e dos bem informados.
É a oportunidade para afinar os dotes políticos ou da oratória. Este ano não vou falar das duas semanas das LAG, não vou discutir, não vou entrar em detalhes sobre o que se diz, o que se faz, e o que sempre, sempre se promete estudar, fazer, melhorar, ver, analisar, tomar atenção. Há quem diga que as LAG são sempre iguais, vira o disco e toca o mesmo.
Mas para o ano é que é; eleições para a AL, novo Executivo, dança das cadeiras, baralha e volta a dar, tudo será diferente. Será? O ambiente é de cortar à faca as fatiotas e as gravatas. Mas pura ilusão, é tudo parte do espectáculo. São todos amigos. Talvez a excepção seja um sr. Deputado e uma sra. Secretária, desavindos desde tempos idos sabe-se lá como e sabe-se lá porquê, mas este ano até o primeiro teve o cuidade de trazer à segunda uma prendinha. Foi um momento
très romatique.
Durante os meus afazeres diários ontem e hoje estive em dois ou três serviços públicos, e foi curiosa a forma como os funcionários (e não só) estavam atentos às LAG. Isto são coisas que lhes interessam, mas parece que não vai haver aumento este ano. Mas os assuntos que se debatem nas LAG? O que têm relamente a ver com as necessidades da população em geral? Sim, o atraso na justiça ou a falta de magistrados, isso interessa. A língua chinesa e portuguesa? Não sei se interessa assim tanto.
Depois vamos ter os deputados que falam do lixo, das calçadas, dos ajardinamentos, do estacionamento, da medicina chinesa, dos horários da recolha o lixo, do barulho aos fins-de-semana, depois a tal deputada eleita pelas domésticas analfabetas e velhotas continuará a sua cruzada contra a internet e os seus males, e todos vão ter a sua opinião muito própria de qual é a forma de repartir melhor os bolos. Cada um com a sua encomenda muito especial.
Para mim as LAG ideais discutiriam problemas sérios e terrenos, como a falta de mercado de emprego para a juventude, a falta de qualidade e o preço de alguns serviços (o das telecomunicações, por exemplo), a lástima que são os transportes públicos, a poluição, o planeamento urbanístico (e nem só da Guia vive o homem), a necessidade de mais um hospital público, enfim, mil e uma coisas. A terceira idade, por exemplo, de que tanto se fala, não me parece assim tão mal. Os velhos andam aí, enchem os autocarros, fazem o que muito bem lhes apetece, não lhes faltam centros de dia, parques públicos ou pedrinhas daquelas redondas para andar em cima.
Todos os dias vejo mais injustiça, mais desigualdade, mais desespero. Uns vejo que comem um min na rua, que almoçam por dez patacas ou menos, que andam por aí ao papelão, que aproveitam tudo o que há de grátis, duas ou mais famílias que vivem em duas assoalhadas porque não conseguem responder aos preços do imobiliário. Outros há que almoçam em restaurantes de luxo todos os dias, que tiram férias fora de Macau duas ou três vezes por ano, que vivem em apartamentos do tamanho de um campo de futebol.
Cada vez oiço mais histórias de caristia, de desemprego, de isolamento. Os mais pobres são atirados para a zona norte da cidade, onde são vetados a um círculo interminável de pobreza. As escolas, cada vez mais elitistas, “atiram” os seus alunos mais problemáticos para escolas onde não podem aspirar a um futuro melhor ou a qualquer ambição de progresso. Faltam agentes sociais, psicólogos, sociólogos. Haver há, estudam lá fora e acabam a trabalhar nos casinos por falta de “saída profissional” ou uma remuneração condigna com o investimento que foi feito. Não faltam só magistrados ou sacerdotes católicos que falem português, minha gente.
Os trabalhadores não-residentes pagam a factura. Alguns que vivem e trabalham no território há mais de dez anos mas nunca conseguiram passar disso mesmo, que constituíram aqui família e criaram raízes, que tanto contribuíram e cujo regresso ao país de origem seria um enorme choque, têm medo. A solução passa por serem os primeiros a sair, em nome do politicamente correcto, e não passam de "números", de excedentário.
A cultura não existe, por muito que se apregoe o farto calendário “cultural” que esporadicamente vai havendo. A cultura geral da população é uma anedota, proporcional à exiguidade deste território onde vivemos. Falta um curso de medicina, de bioquímica, de outros que não façam os jovens precisar de sair do território para prosseguir o seu sonho. Há tanta ponta por onde se pegar, há tantos novelos por desenrolar que davam para umas novas LAG. Ou mais duas. Ou mais três.
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