sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Lições de cantonense, parte X: manual de sobrevivência


Um português que chegue ao território sem saber uma palavra de cantonense tem pela frente um enorme desafio, um mundo novo a descobrir. Os que aprenderam Mandarim podem tentar usar esse conhecimento para comunicar com os locais, e fica mais fácil adaptarem-se ao cantonense, especialmente se souberem ler os caracteres. Quem não sabe mesmo nadinha de coisa nenhuma de chinês, pode tentar falar em inglês (se não souber nem inglês então peço desculpa, vai ter a vida complicada), e com alguma sorte desenrasca-se. Mas se teimar em não aprender pelo menos algumas palavras e frases mais básicas que o permitam andar por aí sozinho, sem depender de ninguém que fale o dialecto local, Macau vai acabar mais cedo ou mais tarde por se tornar uma experiência aborrecida. Proponho este pequeno manual de sobrevivência, sem pretensão de espécie alguma. Eu próprio demorei vários anos a aprender a dizer meia dúzia destas frases.

Primeiro, é preciso ter bons modos, claro. Bom dia diz "chô san", boa tarde diz-se "hmm on", e boa noite normalmente não se diz, sendo um hábito tendencialmente ocidental. Obrigado diz "hmm koi sai" ou "tou che"; se lhe fizerem um favor use a primeira, se lhe ofereceram algo, a segunda é a mais indicada. Se é você a quem agradecem, responda "hmm sai", ou "de nada". Os chineses têm o hábito de se cumprimentar com a frase "sik cho fan mei ah?", que em português se traduz para "já comeu?". Normalmente responde-se "sik cho", ou "já comi", mesmo que isso não seja verdade. É um mecanismo que funciona mais ou menos como o "tudo bem?" - a resposta que se espera é afirmativa. Os chineses não têm por hábito dizer "bom fim-de-semana", mas pode-se dizer "choi kin", que é "até logo" ou "adeuzinho", ou até amanhã, que se diz "teng iat kin". "Teng iat" quer dizer amanhã, e é uma palavra que dá imenso jeito se não souber dizer mais nada. Se o seu porteiro, senhorio, homem do gás ou do lixo lhe baterem à porta com um papel na mão e uma conversa qualquer, e não estiver a perceber nada do que ele diz, diga "tin wa" (telefone) e a seguir "teng iat". Depois procure alguém que fale cantonense e uma língua que você entenda e fique a saber o que ele queria. O mais provável é que queira dinheiro.

Ao fim de algum tempo, e se a adaptação lhe tiver a correr bem, vai começar a aperceber-se da sucessão de festivais, festas e feriados chineses. Eu próprio ainda não sei como se deseja feliz Dia dos Finados, Dia da Implantação da República Popular ou feriado dos barcos dragão, mas Feliz Natal diz-se "seng tan fai lok", feliz ano é "san lín fai lok" (não confundir com "san yat fai lok", que é "feliz aniversário"), e para o Ano Novo chinês diz-se uma data de coisas, desde o mais básico "kung hei fat choi" (feliz ano novo) até "san tai kin hong" (saúde e prosperidade), entre outros desejos sinceros de mesa farta, carteira cheia e cabeça limpa. Caso se aproximem de si nestas datas e lhe desejem qualquer coisa que inclua "kung hei" (felicidade) ou "fai lok" (fortuna), sorria e agradeça com "tou ché". Não se acanhe nem fique desconfiado que se estão a aproveitar da sua falta de conhecimentos linguísticos para gozarem com a sua cara. Os chineses são muito supersticiosos, e não brincam com estas datas festivas.

Quando quiser comer fora, existem mil e um restaurantes de comida no estilo ocidental, onde os empregados são na maioria filipinos, e mesmo os chineses falam pelo menos inglês q.b. (a única excepção é talvez o McDonald's). Caso se queira aventurar sozinho num restaurante chinês, pode ter a sorte de encontrar um com um menu em língua estrangeira, ou com fotografias dos pratos. Apesar de serem cada vez menos, há ainda alguns que têm menu apenas em chinês, nenhum dos empregados fala inglês ou português, e nem há amostras de comida para apontar. Não espere qualquer sentimento de pena ou empatia, pois está como um peixe fora de água. Noutras palavras, aquela comida não é para os seus dentinhos de "kwai lou" (diabo branco). Caso entre num café chinês, basta saber umas palavrinhas para ser entendido e bem servido. Portanto, pão é "bao", queijo é "chi si", fiambre é "fó toi", ovo é "kai tan" e manteiga é "ngao iao" (literalmente, "óleo de vaca"). Isto já chega para a encher a barriga. E para beber? Leite é "nai", chá é assim mesmo, "chá", café é "ka fei", açúcar é "tong" e chocolate ou cacau diz-se simplesmente "chu ku-lik". Depois é só combinar. A propósito, água diz-se "sói". Se for mesmo casmurro como um asno obeso e perneta, e se recusar a aprender uma palavra que seja, aprenda pelo menos esta, que lhe pode salvar a vida. Imagine que se perde no trilho de Ká-Hó num dia de muito calor, desmaia e é encontrado mais tarde desidratado por locais. Se dizer "sói" dão-lhe água, senão arrisca-se a morrer de sede, porque "não pediu". Podem pensar que estou a brincar, e de facto este exemplo sofre de um pouco de exagero, mas já assisti a situações semelhantes. - "Porque é que não ajudaram a velhota quando caíu?" - "Ela não se queixou...".

Voltando à comida. Se quiser cozinhar em casa, tem à sua disposição uma vasta gama de supermercados onde a regra é entrar, comprar, pagar e bazar, e nem precisa de piar. Pega no que quer, paga na caixa, ninguém lhe pergunta nada, um mimo. Nem os números precisa de saber, pois pode ver o preço no mostrador da caixa. Se quiser arriscar uma ida ao mercado municipal para adquirir outros produtos com maior frescura, então convém saber dizer umas coisas. Nos mercados locais, onde os peixes ainda pulam, os porcos são exibidos em secções, da cauda ao focinho, e as aves são degoladas mesmo em frente do freguês, há ainda outras diferenças em relação aos mercados portugueses. A principal diferença é com as unidades de peso. Esqueça por momentos os quilos e as libras, e seja bem vindo à escala chinesa. Se for comprar chá, medicamentos ou outro produto mais leve, usa-se o condorim (分, que se lê "fan"), correspondente a 377 mg, o maz (錢, "chin"), equivalente a 3,7 gramas, ou o tael (兩, "leong"), que são 37 gramas. Com a carne e com o peixe usa-se o cate (斤, "kan"). Quando vir um pedaço de lombo de porco ou de vaca diga quantos "kan" quer, e tenha em conta que um cate são 604 gramas. Muitos portugueses recém-chegados sentiam-se enganados, pois pensavam que se usava o quilo, e ficavam baralhados quando pagavam quase o dobro do que esperavam. O facto de muitos comerciantes usarem (e ainda hoje alguns usam) balanças com dois pratos suspensos numa vara ajudava ainda mais à confusão.

Nos mercados a carne, peixe e os vegetais estão à vista, mas caso queira perguntar se o comerciante tem algum item mais específico, dá jeito saber dizer alguns nomes da fauna e da flora ali expostas. Assim carne de porco diz-se "chu yok", vaca é "ngao iok" e cabra ou carneiro é "yeung yok". Peixe diz-se "yu", e não acrescente "yok", que só se usa para a carne, e camarão é "há". Há "há"? Há há, hoje há "há". Os vegetais de folhagem verde são conhecidos por "choi", que significa "hortaliça". Existem vários tipos, como o "bak choi", o "san choi", enfim, em vez de tirar um curso de horticultura em cantonense, o melhor mesmo é apontar para o quer. Cenoura é "kam sôn", nabo é "lo pá" (daí o nome de "lo pá kou", a famosa bibinca de nabo), tomate é "fan ké", e juntando "chap" (molho) a este "ké", ficamos com o "ké chap", ou seja, "ketchup". Genial, não acham? Uma dica muito importante: coentros diz-se "yim sai". Adoro coentros, e como não são todas as lojas que os têm a vista de toda a gente, sofri muito até aprender o nome. Batata diz-se "su chai", e curiosamente os chineses têm a percepção de que os portugueses "só comem batatas". Já me aconteceu inúmeras vezes entrar numa loja de vegetais, e mal se apercebem da minha presença perguntam-me logo "se quero batatas". Se um chinês estiver zangado consigo e a dizer-lhe das boas, é possível que oiça pelo meio este "su chai". É apenas ele a mandar-lhe ir plantar batatas. Podia ser pior.

Comprar bebidas torna-se uma tarefa simples se tivermos acesso ao frigorífico, mas nas lojas mais pequenas pode-se dar o caso de precisarmos de pedir ao empregado. Além da água, que como já vimos diz-se "sói", temos a Coca-Cola (oh lok), o 7-Up (tchat hei, literalmente "sete acima", e mais uma vez cuidado com a pronúncia do "tchat"), Sprite (su-pik) ou Fanta (fan-ta, curiosamente). Existe uma bebida que os chineses adoram e que para muitos ocidentais é difícil de engolir (eu próprio detesto), que é o Cream Soda, que se diz "kei lim". Cerveja diz-se "pei chao", e este "chao" significa "vinho". Para os chineses qualquer bebida alcoólica é "vinho", mesmo tratando-se de whiskey ou bagaço. Se abrir a boca e detectarem-lhe um bafo a Brandymel, perguntam-lhe se "bebeu vinho". O chá, atendendo que estamos na China, é uma bebida muito popular, e existem vários tipos e formas de infusão. Em Portugal, com excepção dos "ice tea", que têm sabor a fruta, chá para nós é chá, e ponto final. É Li-Cungo, ou Lipton, pouco importa que seja "Breakfast" ou "Peakon", e quem sabe distinguir os dois já é considerado um perito no assunto. Quando vamos a um almoço chinês que os locais designam por "yum chá", ou "beber chá", é servido mais que um tipo. Dos mais comuns há alguns agradáveis, como o jasmim ou o "tin kun-yam", ou "Buda de ferro", e depois um tal Pu'er, ou "pou lei", que sabe a lodo. Isto para o meu gosto, claro, pode ser que haja por aí algum português com as papilas gostativas avariadas que adore aquilo.

Sumo diz-se "chap", e pedir um sumo de fruta natural implica saber os nomes das frutas. Assim maçã é "peng kuo", laranja é "chan", limão é "leng mong", ananás é "po lou" e o meu favorito dos frutos mais sumarentos, a toranja, é "sai iao". Sabendo o nome da fruta da qual se pretende o sumo, é só acrescentar "chap" à frente do seu nome. Para quem optar por uma sobremesa depois da refeição, os nomes são estranhamente semelhantes aos originais. Sobremesa em cantonense diz-se "tim-pan", que significa "coisa doce". Para os chineses as coisas doces comem-se a qualquer hora, e as mousses (mou-si) ou pudins (pou-tin) são hábitos importados. Curiosamente os chineses abominam o conceito de arroz-doce, uma das nossas sobremesas mais conhecidas. Devem considerer isto um ultraje a este cereal que lhes é tão querido. Quem quiser dispensar a sobremesa e ir directamente ao café, vai querer uma bica, se for um bom português. Poucos chineses têm o hábito da bica, e os restaurantes de comida chinesa não costumam ter, mas mesmo que tenham, cuidado ao pedir; diga "expresso", ou caso não se faça entender diga "sai pui ka fei" - isto depois de se certificar que têm o que pede, lógico. Pedindo simplesmente "ka-fei" arrisca-se a acabar com uma banheira de água preta à sua frente.

Quando vai às compras, por vezes é necessário pedir mais um saco. Saco diz-se "toi", mas para facilitar e não haver a lugar a confusão com a pronúncia faça o gesto de segurar um saco. Caso pague uma conta com uma nota alta, por exemplo, 33 patacas com uma nota de 500, é possível que lhe peçam "san chi": "trocado", ou "trocos". Se não tiver diga "mou", e acrescente "hm'ou yi si", literalmente "não foi por mal", ou simplesmente "desculpe", ao que a senhora responde "hmm kan yiu", ou "não faz mal", e depois desamerda-se de jeito a dar-lhe o troco. Se tiver, diga "yao" (tenho), e se quiser imitar os locais, diga em voz alta "yao yao yao!", todo excitado e dando pulinhos de contente, como uma criança que vê pela primeira vez o arco-íris. Aí ela responde-lhe "hou-ah!" - que bom! Por vzes dá-se o caso de ter demorado dias a aprender o nome de um produto de que anda à procura, e leva no fim com um seco "mou-ah", ou "não temos". É possível que em algumas situações escute "mai-sai", que quer dizer "já acabou", ou está esgotado". Esta palavra "mai" significa "comprar", e dita num tom ligeiramente diferente quer dizer "vender", o que temos que admitir, é lixado. "Compra e venda" diz-se "mai mai", e para um estrangeiro nunca se fica com a certeza de qual se diz primeiro.

Como pode ver, aprender estas palavras e expressões tão simples podem facilitar-lhe a vida. Não seja teimoso recusando-se a aprender, e não tenha medo de falar, mesmo quando não tem a certeza do que está a dizer. Eu próprio errei centenas de vezes antes de atinar com algumas frases, riram-se de mim, apontando-me o dedo à cara enquanto exibiam a cremalheira completa toda preta dos cigarros. É preciso saber sofrer, meus amigos. No entanto tenha cuidado para não se esmerar muito no pouco que sabe, ou o seu interlocutor pode pensar que você domina o dialecto, e fica ali a papiar consigo durante minutos. Se quiser alinhar na brincadeira, fique apenas a escutar, ria quando ele ri, diga "ohhh" de vez em quando, ou "hai-meh?" (é mesmo?), e ele confirma com um "aya, aya" (é, é). Caso seja menos dado à galhofa, dê a entender que não domina a língua; se entrar num café peça o menu desenhando um rectângulo com os dedos, para deixar claro que não está ali para conversar. Mas cuidado com a mímica em alguns casos. Por exemplo, casa de banho diz-se "chí sô", e para perguntar onde fica diz-se "chì sô ai pin-to ah?". Veja lá o que vai fazer, pelo santo Buda. Quando acabar de comer, de beber ou de comprar é só pedir a conta (mai-tan), pagar (pei chin), e pôr-se a milhas (chao lá). Assim parece tão fácil.

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